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Os papéis do imperador viajante

Chegou-me pela minha amiga Ive Tavares, à qual agradeço, a notícia de que o arquivo pessoal do Imperador D. Pedro II do Brasil é candidato à classificação de Património Mundial da Humanidade. A notícia de tal projecto foi divulgada na versão on-line do jornal Globo, transcrita abaixo com algumas supressões.

«A visão do mundo por meio de relatos de um célebre viajante, Dom Pedro II, compõe um conjunto com 871 documentos da Casa Imperial do Brasil, que recebeu no início do mês o Registro Nacional do Comitê do Programa Memória do Mundo, concedido pela Unesco. A nomeação é o primeiro passo para que uma obra possa se tornar Patrimônio Histórico da Humanidade. Para isso, pesquisadores trabalham no Museu Imperial, em Petrópolis, na análise de outros 50 mil documentos deixados pelo monarca, à procura de mais relatos referentes às suas jornadas.


— Para se tornar Patrimônio Histórico da Humanidade, a obra deve ter um tema que seja relevante para diferentes partes do mundo. Dom Pedro viajou pelos quatro continentes, em dezenas de países. De cada lugar ele fez um relato minucioso. Por isso, esperamos ser contemplados em 2012 com o título — diz a historiadora Neibe Machado da Costa, responsável pelo arquivo da Casa Imperial do Brasil. [...]. Depois de concluída a leitura do restante dos documentos, a Casa Imperial do Brasil planeja lançar publicações digitais e convencionais e catálogos educativos. Também está prevista uma grande exposição para 2014. [...].





 Um dos muitos diários do Imperador D. Pedro II (1825-1891)


Viajar era, sem dúvida, uma paixão para Dom Pedro II. Num de seus diários, ele afirma que preferia não ter sido imperador para poder se dedicar mais ao turismo. O trecho diz: “Nasci para consagrar-me às letras e às ciências, e, ocupar posição política, preferiria a de presente da República ou ministro à de imperador. Se ao menos meu pai imperasse ainda estaria eu há 11 anos com assento no Senado e teria viajado pelo mundo.”


Por meio dos 871 documentos já analisados pelas pesquisadoras da Casa Imperial do Brasil, sabe-se que ele passou por países de culturas completamente distintas, como o Canadá, a Rússia, a Turquia, a Alemanha e a Itália.


— Temos documentos de pessoas que influenciaram Dom Pedro a conhecer determinado país. Ele tinha grandes amigos nos EUA, por exemplo. O que queremos é demonstrar as interligações pessoais e diplomáticas do imperador — explica a historiadora Neibe Machado da Costa, responsável pelo arquivo da casa.


Uma de suas viagens mais marcantes ocorreu em 1876, justamente para os EUA, para onde ele foi como convidado de honra para a Exposição Universal, na Filadélfia, Pensilvânia. Foi lá que o imperador conheceu o telefone e se encantou, trazendo-o para o Brasil, que foi o segundo país a ter a invenção. Como presente aos anfitriões, ele levou um hino feito pelo maestro Carlos Gomes especialmente para os americanos. Em outra correspondência, com Guilherme Capanema, o Barão de Capanema, o imperador pede que ele compre três casas em Viena, na Áustria, onde pretendia montar o Museu da Cultura Brasileira. O projeto acabou não se concretizando.


O Brasil não ficou de fora do roteiro de Dom Pedro II. Ele passou por diversas cidades do país e fez relatos detalhados de como era a vida nesses lugares. Um costume que tinha era o de, em cada município, visitar a Câmara, a cadeia e a escola. Em uma de suas viagens ao Espírito Santo, ele teve contato com os índios puris. Na ocasião, fez um pequeno glossário traduzindo termos do seu dialeto para o português. [...].


— Os documentos são referentes a 50 anos da vida do imperador. Ainda estamos começando, mas a expectativa é que até 2012 o trabalho esteja concluído para que possamos divulgar essas passagens da vida dessa personalidade da História brasileira — conclui a pesquisadora.[...]»

Sociedade Arqueológica Lusitana: memórias de um fundador

O liberalismo oitocentista trouxe à sociedade portuguesa a preocupação pela memória e identidade nacional, atitude consonante com a cultura romântica vivida na época em toda a Europa. Nesse âmbito, as elites culturais (locais e nacionais) formaram ao longo do século XIX organizações que se responsabilizassem pela conservação do património material da nação, o suporte físico da memória nacional. A primeira organização portuguesa dedicada à conservação e divulgação do património material, no caso património arqueológico, foi a Sociedade Arqueológica Lusitana (SAL).

Um dos seus fundadores, o setubalense Almeida Carvalho, relata na sua autobiografia o processo de formação da SAL, o qual transcrevemos:

«Em Setúbal relacionei-me com o vigário-geral Manuel da Gama Xaro, homem de vasta erudição e prodigiosa memória, talvez o primeiro antiquáriodo seu tempo. [...]. As nossas conversas versavam ordinariamente sobre antiqualhas, e várias vezes fomos visitar as ruínas romanas de Cetóbriga, situadas na sítio da Tróia, na margem esquerda do Sado.
Constando-nos que o duque de Palmela mostrava desejo de visitar aquelas ruínas, concebemos o projecto de o convidar para presidente de uma sociedade que deveria proceder a escavações em Tróia, e com os objectos encontrados formar um museu em Setúbal.
Constituímo-nos em comissão, e escrevemos ao duque, convidando-o a declarar-se protector da sociedade. Fui portador da carta.Tive o melhor acolhimento da parte do duque, que não só me declarou que se honrava de pertencer a uma sociedade científica, a primeira que no nosso país se propunha a tão louvável empresa, mas ainda, como prova da sua muita consideração pela mesma sociedade viria a Setúbal assistir à  sua inauguração. A resposta do duque produziu muita satisfação e entusiasmo. A lista dos associados aumentou logo consideravelmente e começaram os preparativos para a recepção.
No dia 8 de Novembro de 1849, todos os sócios fundadores, com o comandante de Caçadores 1, Joaquim Bento Pereira, depois barão do Rio Zêzere, montados em cavalos, fomos esperar o duque, que encontramos próximo à quinta do Esteval. Vinha acompanhado de seus genros, o marquês das Minas e o conde de Alcáçovas, e do seu secretário particular Roberto José da Silva. Vinham todos igualmente a cavalo. [...].
No dia 9, de manhã, o duque com a sua comitiva, os fundadores da sociedade, e várias outras pessoas, embarcámos em escaleres e fomos visitar as ruínas de Tróia. Voltando a Setúbal, o duque, acompanhado do comandante de Caçadores, visitou o quartel onde se achava formado o batalhão. De tarde, dirigiu-se ao segundo andar dos chamados Paços do Duque, onde, numa espaçosa sala, decentemente ornamentada, presidiu à inauguração da Sociedade Arqueológica Lusitana. Abriu a sessão pronunciando um discurso de agradecimento pelas atenções recebidas e de louvor à iniciativa. Terminou afirmando estar confiado de que el-rei D. Fernando aceitaria a honra de protector da Sociedade.
A direcção foi constituída pelos fundadores. (1) Fui eleito secretário. Elaborámos os estatutos, que foram aprovados em assembleia geral. Sua Majestade dignara-se aceitar o título de protector . Em 1 de Dezembro uma deputação de dez sócios, incluindo os fundadores, era recebida no Paço das Necessidades e agradecia a mercê que se dignara conceder à Sociedade. O duque, que aceitara o título de presidente vitalício, ofereceu à deputação um magnífico jantar no seu palácio.

Os estatutos foram aprovados por alvará de 27 de Março de 1850. Fiz quanto a mim [o que ] cabia para que a Sociedade progredisse, escrevendo notícias e relatórios, solicitando tudo quanto era conducente ao fim da empresa científica em que nos havíamos empenhado, tomando parte na direcção dos trabalhos das escavações.
Os trabalhos continuaram enquanto dispusemos de meios financeiros. Alguns progressos se fizeram a bem da história e da ciência. A Sociedade Arqueológica prestou alguns serviços de valia, descobrindo diversas antiqualhas e descrevendo-as.
Quando, porém, tudo prometia ainda, faleceu o duque de Palmela, animador da Sociedade. D. Fernando, por diversas vezes, ofereceu a sua protecção e auxílio para que a Sociedade prosseguisse os seus trabalhos, mas o desânimo tinha substituído o entusiasmo e a Sociedade acabou.
As antiqualhas que se haviam encontrado nas escavações feitas nas ruínas de Tróia, e se encontravam guardadas por alguns sócios fundadores, a requerimento meu e do Dr. Domingos Garcia Perez foram admitidas em depósito na Academia das Belas Artes de Lisboa, como determinou a portaria do Ministério do Reino de 29 de Janeiro de 1869. Fui eu o encarregado de recolher e depositar as referidas antiqualhas, o que efectivamente fiz. As que estavam à minha guarda, entreguei-as em 26 de Fevereiro. As que estavam confiadas ao Dr. Garcia Perez, em 13 de Julho. Nesta data depositei também todos os livros e outros papéis pertencentes à Sociedade Arqueológica Lusitana. As antiqualhas confiadas à guarda de outro sócio fundador, Sebastião Maria Pedroso Gamito, não foram entregues nessa altura por dificuldades postas pelo seu depositário. Porém, em 18 de Março de 1882, seu filho Epifânio Augusto Pedroso Gamito dirigiu-se à Academia de Belas Artes participando o falecimento de seu pai e querendo entregar as antiqualhas que lhe haviam sido confiadas.»

Portando, a vida da SAL foi efémera. Anos depois, em 1868, o marquês de  Sousa Holstein  (filho do duque de Palmela, presidente vitalício da SAL) recriou outra instituição arqueológica, sob a designação de "Real Instituto Arqueológico de Portugal" (2). Os estatutos foram aprovados pelo decreto de 21 de Outubro mas igualmente teve vida efémera devido a falta de meios e «outros embaraços».


Notas:

1- A direcção da SAL ficou composta pelo duque de Palmela, (presidente vitalício) o prior Manuel da Gama Xaro, o Dr. Domingos Garcia Perez, o Dr. Aníbal Álvares da Silva, Jorge Torlades O'Neil, Sebastião Pedroso Gamito e João Carlos de Almeida Carvalho (secretário)

2 - Foram os fundadores do Real Instituto Arqueológico de Portugal o marquês de Sousa Holstein, Augusto Carlos Teixeira de Aragão, Dr. Levy Maria Jordão, Dr. Francisco António Pereira da Costa, João Carlos de Almeida de Carvalho (tesoureiro), Inácio Vilhena Barbosa, Frederico de Pinho e Sousa e Augusto Soromenho.

Bibliografia:

CARVALHO, Almeida - Acontecimentos, lendas e tradições da Região Setubalense, vol. 1: memórias do autor. Setúbal: Junta Distrital de Setúbal, 1968, p. 51, 52, 66, 67.