Os livreiros em Portugal nos séculos XVI a XVIII: notas para a sua história II

A Confraria dos Livreiros
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O ofício de livreiro estava em franca expansão no século XVI principalmente nos grandes centros urbanos como Lisboa e Coimbra. A instalação da corte, dos serviços administrativos e dos orgãos de Estado em Lisboa e a instalação Universidade em Coimbra foram factores decisivos para o rápido aumento dos livreiros nestas cidades. Em 1552 havia em Lisboa 20 tendas de livreiros na sua maioria com três ou quatro empregados, ou seja, provavelmente mais de 3 ou 4 dezenas de pessoas empregues no ofício. Destas tendas, 11 situavam-se na Rua Nova, o maior centro comercial da capital do século XVI. Em Coimbra estão contabilizados 22 livreiros segundo Fernando Guedes (1993, p. 27) e 12 de acordo com José Pinto Loureiro (1954, p. 116). Lisboa albergava um número de pessoas ligadas ao negócio do livro, quer no fabrico, quer na venda, suficientemente grande para justificar uma confraria de livreiros. A confraria designada por Irmandade de Santa Catarina do Monte Sinai ou Confraria de Santa Catarina da Corporação dos Livreiros naturalmente tinha por orago Santa Catarina. Foi fundada por D. Catarina em 1557 e reunia-se na Igreja de Santa Catarina cuja construção iniciou-se nesse ano nos arrabaldes da porta de Santa Catarina, onde actualmente se situa a calçada do Combro. Esta confraria tinha por confrades não só mercadores de livros, mas também impressores, de modo a abranger todas as actividades profissionais relacionadas com o objecto livro. Estranho mas igualmente interessante era a disposição do seu estatuto em obrigar a inclusão no universo dos confrades de um número de nobres não superior a vinte e dois. Porque motivo? Tanto quanto sabemos, esta é a única confraria com tal requisito. Dos cargos administrativos da confraria, o tesoureiro e um dos mordomos tinham necessariamente de ser livreiros, enquanto que o outro mordomo, o juiz e o escrivão tinham de ser nobres. O financiamento da confraria era obtido através das contribuições dos confrades e pelas taxas que se cobravam aos aprendizes e oficiais livreiros. Havia ainda uma «jóia» de inscrição para cada entrada de um novo irmão constituída por dois arratéis de cera ou dinheiro nesse valor. A viabilidade económica provavelmente seria as receitas extraordinárias como as doações de monarcas e príncipes que em muito engrandeciam o cofre e o património da confraria. A confraria recebeu um grande “presente” em 1567 quando a Rainha D. Catarina lhe ofereceu o padroado da paróquia lisboeta de Santa Catarina. Tal como as demais confrarias da época, a finalidade da Confraria de Santa Catarina da Corporação dos Livreiros era a assistência material, médica e espiritual de todos os seus elementos, não englobando quaisquer competências de índole profissional ou corporativa. Todo o confrade tinha um vasto leque de obrigações, desde da assistência às missas (especialmente no do dia da padroeira a 25 de Novembro) até à ajuda de confrades doentes, endividados (até ao montante de 10 cruzados) e carenciados (Guedes, 1993, p. 62-63).

Fólio 12 dos estatutos de 1644 da Confraria dos Livreiros. Fonte: (Guedes, 1993, p. 59).
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A organização corporativa
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Em Lisboa, os livreiros estavam organizados profissionalmente, pelo menos desde 1539 e em Coimbra ainda mais cedo (1517). Na capital faziam parte da bandeyra do Arcanjo de São Miguel. A bandeira era uma organização corporativa de cariz profissional, que agrupava vários ofícios numa mesma estrutura nem sempre relacionados entre si. As bandeiras só tiveram lugar em Lisboa (Ibid., p. 68) e tinha um funcionamento interno semelhante à da confraria mas com objectivos distintos. Compunha-se por uma Mesa para a qual eram eleitos dois juízes, um escrivão geral, dois mordomos e mais doze eleitos que detinham a procuração dos seus ofícios durante um o ano. No âmbito da estrutura da bandeira, os livreiros tinham direito a serem representados na Casa dos Vinte e Quatro de Lisboa, por um dos mordomos na qualidade de deputado na mencionada Casa. O primeiro regimento do ofício de livreiro data de 1572, substituído em 1733 por um segundo. Tanto no primeiro como no segundo, que não trouxe grandes alterações, os principais regulamentos para além dos aspectos de organização interna das estruturas sócio profissionais representativas do sector, diziam respeito ao modo de ser exercida a habilitação de livreiro e a profissão. Através dos elementos contidos no regimento é possível reproduzir uma imagem mais ou menos aproximada do livreiro na Idade Moderna em Portugal, nomeadamente os requisitos técnicos para se poder exercer legalmente o ofício. O aprendiz de livreiro, tal como se verificava noutros ofícios, provavelmente iniciava a sua aprendizagem desde muito novo na tenda de um mestre-livreiro. Para ficar apto no ofício tinha de conhecer os rudimentos comerciais (contabilidade, expedição de mercadoria, encomendas, pagamentos de letras de câmbio, créditos, etc...) e dominar as técnicas de encadernação, avaliadas pelos os oficiais da profissão. Na mencionada petição de António Alvares, este diz ter na sua tenda “ um oficial examinado para haver de encadernar e vender” (Anselmo, 1997, p. 55). Estas exigências técnicas justificavam-se porque na maioria das vezes as impressoras entregavam as obras aos livreiros em folhas ou cadernos soltos, competindo a estes a sua encadernação. Daí a necessidade de terem conhecimentos de encadernação ou então terem um encadernador a trabalhar para si. Só depois de aprovado no exame feito pelos oficiais da corporação, o aprendiz de livreiro era aceite oficialmente como livreiro. O regimento previa ainda a verificação da qualidade do produto, por meio de visitações ou fiscalizações às lojas dos livreiros de modo a aferir a qualidade da impressão, encadernação e conservação das obras vendidas ao público.
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Bibliografia:
ANSELMO, Artur (1997)- Aspectos do mercado livreiro em Portugal nos séculos XVI e XVII in Revista Portuguesa de História do Livro e da Edição, Lisboa: Edições Távola Redonda, A. 1, nº 2
BELO, André (2001) – As Gazetas e os livros: a Gazeta de Lisboa e a vulgarização do impresso (1715-1760). Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
[Constituições da Congregação dos Lóios da Ordem de S. João Baptista, aprovadas e mandadas imprimir pelo Capítulo realizado no Convento de São João de Xabregas em 1540] – Lisboa: Germão Galharde, 1540
Constituições da Ordem de S. Paulo], em Lisboa: por Pedro Craesbeeck, 1617
GUEDES, Fernando (1993) – Os livreiros em Portugal e as suas associações desde do século XV até aos nossos dias. Lisboa: Verbo
LOUREIRO, José Pinto (1954) – Livreiros e livrarias de Coimbra in Arquivo Coimbrão. Coimbra: Biblioteca Municipal de Coimbra, vol. 12

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