Alguns aspectos da Biblioteca Real de D. João V (1707 - 1710)

Vários autores afirmaram ter sido o rei D. Afonso V (1432 -1481) o fundador da Biblioteca Real, desconhecendo-se porém o ano da fundação (Ribeiro, 1914, p. 62). Provavelmente terá sido instituída durante a presença do Infante D. Pedro, antigo Regente e tio do rei, na corte como conselheiro real. O Infante D. Pedro, pessoa erudita, amiga da cultura e do conhecimento deverá ter influenciado o seu sobrinho a tomar tal iniciativa. A primitiva Biblioteca Real estava localizada no Paço Real de Évora (Ibid., p. 62) e só posteriormente, talvez no reinado de D. Manuel I (1495 - 1521), transferiu-se para o Paço da Ribeira em Lisboa. A Biblioteca Real afonsina seria ainda marcadamente medieval, detentora de um fundo documental pouco extenso para os padrões actuais e eventualmente confinada a um espaço reduzido no complexo palaciano, embora pudesse contar com a generosidade do tesouro real que adquiriu muitos impressos e manuscritos e com a diligência de Gomes Eanes de Azurara, o seu primeiro bibliotecário, que a pôs em ordem (Ibid., p. 63).
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Naturalmente a Biblioteca Real passou por períodos de prosperidade variável conforme o estado das finanças reais e o maior ou menor gosto das letras por parte dos reis. Mas a partir da primeira metade do século XVI uma conjugação de factores vão possibilitar o desenvolvimento incessante das bibliotecas reais europeias. A complexidade da administração do estado que conduz à fixação geográfica permanente da corte real no espaço palaciano, a divulgação crescente do livro impresso e sobretudo a instrumentalização da biblioteca como meio de prestígio da monarquia, fazem os reis adoptar uma política de fomento biblioteconómico através de uma aquisição documental mais intensa e regular, a dotação de mais meios materiais e humanos e a expansão espacial destas no interior do complexo arquitectónico do palácio real. Em Portugal esta interacção de factores ocorre a partir do reinado de D. Manuel I, sendo no entanto interrompida com a monarquia dualista filipina, que afasta a corte para Madrid durante 58 anos. Quando D. Filipe I em 1583 parte de Lisboa para Madrid deixa o Paço da Ribeira sem rei, entregue aos seus representantes, ocupantes de cargos políticos temporários, carenciados de legitimidade e talvez de interesse para manter uma política de engrandecimento da Biblioteca Real num palácio sem rei e sem corte. Cumulativa a esta realidade, está o crescente deficit financeiro da realeza filipina até 1640, postergando a aquisição de documentos para objectivos secundaríssimos. O absentismo dos monarcas filipinos deve ter deixado a Biblioteca Real parada no tempo durante 58 anos.
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Com a Restauração, o Paço da Ribeira voltou a ser habitado por um rei, D. João IV (1640 - 1656). A Biblioteca Real recuperou a sua dignidade, e o mais importante, foi acrescentada com novos livros, pois em 1648 D. João IV transferiu uma grande parte da biblioteca do Paço Ducal de Vila Viçosa, de dimensões bastante razoáveis, para a biblioteca do Paço da Ribeira (Ferreira, 1940, p. 59). Mas foi no reinado de D. João V (1707 - 1750) que a Biblioteca Real alcançou o seu período áureo, mercê do espírito mecenático do rei, do prestígio da monarquia joanina e das receitas do ouro brasileiro.
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No âmbito da política de engrandecimento da realeza, D. João V, logo no primeiro ano de reinado manda reformar o Paço da Ribeira, para acolher com o máximo esplendor a sua esposa D. Maria Ana de Áustria, filha do Imperador Romano Germânico Leopoldo I. A Biblioteca Real mudou de sítio, porque no espaço que ocupava fez-se uma divisão reservada aos negócios do Cabido (Pimentel, 1992, p. 121). O novo espaço seria maior para poder acomodar as remessas de livros encomendas nas várias cidades europeias.

O torreão poente do Paço da Ribeira. A Biblioteca Real ocupava o segundo piso do edifício, destruido pelo terramoto de 1755. Pormenor da gravura de Dirk Stoop de 1662 representando o embarque da infanta D. Catarina, Rainha de Inglaterra. Fonte: URL: http://www.arqnet.pt/portal/imagemsemanal/junho0303.html

A par de um novo espaço D. João V decidiu aumentar substancialmente o fundo documental da sua biblioteca. Encomendou ao corpo diplomático português nas principais cortes europeias livros e até bibliotecas particulares vendidas em leilão como fez com o padre. D. Luís Caetano de Lima, clérigo teatino e secretário do embaixador português em Haia entre 1710 e 1718:

«Foi também [Padre D. Luís Caetano de Lima] em differentes occasiões encarregado da compra de numerosas partidas de livros, e de algumas livrarias inteiras, que por aquelle tempo se vendêrão em Hollanda, de que o Grande Rei D. João V formou a sua numerosissima, e selecta Bibliotheca. E talvez este seria o fim, e o motivo, por que o mesmo Monarca lhe mandou entregar algumas cedulas em branco, e sómente firmadas de seu Nome, pela sua Real Mão, das quaes as que o dito Padre ainda conservava em seu poder, voltando para Lisboa, pessoalmente entregou ao mesmo soberano.» (Caetano de Bem, 1794, p. 147).

E D. Luís da Cunha, embaixador português em Haia, adquire entre 1728 e 1731 cerca de 9 remessas de livros enviadas à Biblioteca Real. O monarca mandou igualmente comprar livros, sobretudo de Teologia e Direito, para a Biblioteca da Universidade de Coimbra (Veiga, 1991, p. 37, 41, 50 - 51, 53, 56, 59 - 60, 71, 82 - 84, 90, 93). A bibliofilia real era conhecida em determinados círculos da Europa pois em 1746 foi-lhe entregue através embaixada portuguesa em Paris o catálogo da biblioteca do Abade de Orleães para uma eventual compra (Ibid., p. 344). D. João V também subsidiou vários escrivães em Roma, na Biblioteca do Vaticano, para transcreverem as obras originais dos Santos Padres a fim de colocar na biblioteca as respectivas cópias [1].

Esta política de aquisições sujeitava- se a um rigor selectivo pois já no século XVIII havia a consciência de que na imensidão dos livros nem todos eram merecedores das bibliotecas, especialmente de uma biblioteca real. A vulgaridade dos livros, a maioria de gosto popular, publicados sem critério excepto o comercial, era vista por alguns intelectuais como um mal cultural, uma “praga” da república das letras (Mota, 2003, p. 77-78). Por conseguinte nomeou-se uma comissão de sábios responsável pela política de aquisições e de catalogação da Biblioteca Real, que D. Francisco Xavier de Menezes, 3º Conde da Ericeira menciona nos comentários à Bibliotheca Sousana:

« Já ponderey (como agora repito no Catalogo de huma Biblioteca Selecta, que o Author deixou muito adiantado) quando era util o conhecimento dos Authores escolhidos, de que huma Livraria deve comporse, não occupando indignamente os maos livros os lugares dos selectos, o tempo, e a despeza dos estudiosos, sendo aquella vulgar multidão a que, diz Seneca, distrahe, e não instrue aos que aprendem. Nos ultimos dous seculos tem sido utilissima esta applicação, a que chamão superficial os que o são nos seus estudos. Empregava-se o nosso Author [D Manuel Caetano de Sousa] na primeira, e mais nobre parte da numerosa, e excellente Livraria, que el Rey tem, e formou, conserva, e augmenta mais na sua comprehensão, que no seu Palacio. Ao Padre D. Manoel tocou a parte, que comprehende a Biblia, e os seus Expositores. Ao Illustrissimo João da Mota e Sylva, então Conego Magistral da Santa Igreja Patriarchal, hoje Eminentissimo, e dignissimo Cardeal da Santa Igreja Romana, se distribuîo a Theologia em todas as suas divisoens. Ao Illustrissimo Paulo de Carvalho e Attaide, o Direito Canonico, e Civil. Ao Doutor Francisco Xavier Leitão, Medico da Camera de Sua Magestade, e hoje digno Academico da Academia Real, pertencerão os livros de Filosofia e Medicina. Ao Excellentissimo Marquez de Alegrete Fernão Telles da Sylva, do Concelho de Estado, se fiou a Filologia. Ao Excellentissimo Marquez de Abrantes, Gentil homem da Camera, a Historia. E a mim, para que a eleição só nesta parte não fosse igual, a Mathematica, e as outras Artes. Os Catalogos, que anciosamente desejamos ver impressos, erão todos com Critica judiciosa, e o que fez o Reverendissimo Padre D. Manuel merecia hum titulo à parte nesta Bibliotheca Sousana. » (Academia Real da História Portuguesa, 1736, p. 45 -47).

Os catálogos dos cerca de 30 000 volumes que compunham a Biblioteca Real nunca chegaram a ser publicados e quase tudo acabou entre escombros e cinzas no dia 1 de Novembro de 1755. Desaparecera uma grande e selecta biblioteca com muitas preciosidades bibliográficas, obras raras e únicas.

Notas:

[1] Relação do horrível e espantozo terremoto que padeceu o Reino de Portugal com especialidade a corte de Lisboa sua Metrópole em 1º de 9bro do anno de 1755 escrita por hum curiozo, para memoria das Idades Futuras, manuscrito de 1756 incluído no tomo 2 da colectânea de textos sobre o terramoto entitulado Biblioteca Volante ou colleção de relações dos lamentáveis effeitos que fez o Terremoto do 1º de Novembro de 1755, compilados e reunidos por Fr. Matias da Conceição em 1756, fol. 9 - fol. 9v.

Bibliografia:

ACADEMIA REAL DA HISTÓRIA PORTUGUESA (1736) - Collecçam dos Documentos e Memorias da Academia Real da Historia Portugueza...Lisboa: na Officina de Joseph Antonio da Sylva

CAETANO DE BEM, Thomaz, D. (1794) – Memorias Historicas Chronologicas da Sagrada Religião dos Clerigos Regulares em Portugal , e suas Conquistas na India Oriental. Lisboa: na Regia Officina Typhografica, 2º vol., 2º tomo

FERREIRA, Carlos Alberto (1940) - As Livrarias Reais de D. João IV a D. João VI, in Congresso do Mundo Português, [Lisboa]: Comissão Executiva dos Centenários, vol.VII, tomo 2º

MOTA, Isabel Ferreira da (2003) - A Academia Real da História: os intelectuais, o poder cultural e o poder monárquico no séc. XVIII. Coimbra: Minerva

PIMENTEL, António Filipe (1992) - Arquitectura e Poder: o Real Edifício de Mafra. Coimbra: Universidade de Coimbra

RIBEIRO, José Silvestre (1914) - Apontamentos históricos sobre bibliotecas portuguesas. Coimbra: Imprensa da Universidade

VEIGA, Raul da Silva (1991) - Catálogo de Documentos do Cartório de D. Luís da Cunha (1709 - 1749). Coimbra: Instituto Nacional de Investigação Científica

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