Pequenas batalhas navais II (Albufeira, 1554)

Desde o término da Reconquista, em 1249, até ao início do século XIX, a orla costeira portuguesa foi frequentemente atacada por corsários magrebinos. Oriundos de Argel, Salé, Tetuão, Trípoli e Tunes, rapidamente alcançavam a costa meridional da Península Ibérica através dos ventos favoráveis na maior parte do ano. Entre a Primavera e o Outono a população e o tráfego marítimo tinham de estar precavidos, particularmente no Algarve, a zona mais afectada pelo corso norte africano, pois a qualquer momento poderia surgir no horizonte uma frota de corsários. As operações de corso não eram de grande espectacularidade, procuravam alvos fáceis, tais como embarcações isoladas, de pequena tonelagem, e pequenas aldeias junto à costa. Ao contrário do corso francês, inglês e holandês, que procurava as ricas frotas das Américas, estes buscavam o rapto de pessoas, fosse quem fosse. Os elevados resgates pagos pelos familiares das vítimas, pelos religiosos da Ordem da Santíssima Trindade, pelas Misericórdias ou ainda pelo tesouro régio, faziam desta actividade um próspero negócio. Se o raptado não fosse resgatado ao fim de um certo período, o mais certo era ser vendido para o mercado de escravos, ou ser usado como remador forçado nas galés corsárias. Enfim, a perda nunca era total , valendo o esforço e risco.
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Cedo também as autoridades portuguesas implementaram acções de defesa e prevenção. Depois da terra, o mar era a nova fronteira. A partir dele vinham os perigos. Ergueram-se torres de vigia e fortes ao longo da costa. Aos mais suscetíveis de serem atacados, como os pescadores, autorizou-se o porte de armas brancas. Porém, a acção mais preventiva foi talvez a organização da Armada de Guarda Costa. Tinha como missão patrulhar todos os anos, entre a Primavera e o Outono, a costa até ao Estreito de Gibraltar, com o objectivo de combater em pleno mar as frotas corsárias, evitando assim os ataques em terra. Na maioria das vezes os corsários evitavam o confronto, mas em certas ocasiões travavam-se pequenas batalhas navais, com a que se descreve, ao largo de Albufeira em 1554.
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« [...] Dom Pedro da Cunha, Capitam Moor das minhas galés e da mais armada que traguo na costa do Reino do Algarve pera defemsam dela, que sabendo o dito Dom Pedro que eram vindos oyto navios de remo de turquos de Argel, de que era capitam Cazale, turquo, pesoa de muita expeiremcia e credicto amtre os turquos de Argel para saltear e daneficarem os lugares da costa do Reino do Algarve, correra a dita costa omde chegou nova como aos XX deste mes quatro dos dictos navios lamçaram jemte fora jumto a dita vila de Albofeira e dahy a hũua leguoa os descobrio que vinham corremdo a costa. E como o viram se fizeram de volta ao maar para ver se se poderiam por a balrravemto dele, o qual trabalhou de se por a balrravemto dos dictos navios, e hũus e outros remaram desta maneira, mais de tres leguoas ao mar. E ficando ja o dicto Dom Pedro com a sua galee a balrravemto dos dictos navios deu vela em popa comtra a galee capitaina dos dictos turquos; a qual era de vinte e hũu bamcos e a ymvestio quasy pelo meo e lhe meteo o esporam de madeira que se nam poderam mays aparttar, e tirada artelharia sua e dos turquos ficaram aas arcabuzadas. Trazia a dita galee oytemta remeiros, dos quaes eram setemta christaãos e trazia mais de setemta arcabuzeiros, e o mays deles alem dos arcabuzes traziam arcos turquiscos. Emtraram quinze ou vimte turcos pola proa na galee do dicto Dom Pedro, matando e ferindo aa espada. Tornou os a lamçar fora e alguus deles ficaram morttos, e alem de asy pelejarem aa espada, nam cesava de juguar de hũua partte e da outra a arcabuzaria. Durou a peleja mays de duas oras, per derradeiro a remdeo o dicto Dom Pedro e premdeo o dicto Cazale, capitam dela, com lhe primeiro matarem quarenta turcos e a mor partte dos outros muito feridos. E eles mataram ao dicto Dom Pedro nove homens e feriram lhe quasy cimcoenta, antre forçados, soldados e criados de Sua Alteza.
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Dom Vasco da Cunha, yrmão do dicto Dom Pedro, capitam doutra galee ymvestio outro navio dos dictos turquos de dezanove bamcos e o remdeo e durou a peleja huua ora. O dicto navio trazia sesemta arcabuzeiros turquos e quasy toda a remavam christaãos captivos. Mataram ao dicto Dom Vasco oyto homens e feriram lhe quaremta.
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Dom Nuno da Cunha, tambem capitam doutra galee deu caça a duas fustas do dito turquo que ficavam mays perto do dicto Dom Nuno, e abalroou com hũua, e a remdeo, onde lhe mataram tres homens e feriram quinze, e ao entrar da dita fusta socobrou e virou a quilha para cima. Deu lhe huu cabo para a trazer, pareçe que se salvara posto que os mares eram grandes e o vemto muito e estava sette leguoas de terra.
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A outra fusta vemdo o desbarato dos tres navios fugiu. Dizse que se tomariam em todos os tres navios mays de duzemtos turquos e que os christaãos que se neles acharam, que amdavam captivos e forçados seriam cento. Nam se sabe aymda em certto o ditto número de turcos, nem dos christaãos. Dos outros quatro navios de turquos que vinham em comserva destes outros nam se sabe mays deles, que a noyte pasada do dia da peleja se aparttarem por gramde vento que fazia. [...] (IRIA, apud GUEDES, 1988, pp. 37, 38)»*
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Combate entre galés da Ordem de Malta e galés turcas no Mediterrãneo. Como ilustra esta expressiva imagem, os combates navais envolvendo galés privilegiavam a táctica da abordagem e a luta corpo a corpo, tal como ocorreu ao largo de Albufeira em 1554. Gravura de J. Callot, séc. XVII. Fonte: GUERREIRO, Luís R. - O grande livro da pirataria e do corso. [S.l.]: Temas e Debates, 1997, p. 210
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Notas:
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* Esta transcrição é um trecho da carta que o rei D. João III escreve a D. Duarte, embaixador português no Sacro Império Romano-Germânico, datada de Julho de 1554. Foi publicada por Alberto Iria em 1976, na obra Da importância geo-política do Algarve na defesa marítima de Portugal nos séculos XV a XVIII, p. 41.
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Bibliografia:
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GUEDES, Lívio da Costa (1988) - Aspectos do Reino do Algarve nos séculos XVI e XVII: a «Descripção» de Alexandre Massai (1621). Lisboa: Arquivo Histórico Militar

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