Os livreiros em Portugal nos séculos XVI a XVIII: notas para a sua história I

O livreiro no século XVI: uma tentativa de definição
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Em alguns locais existiam livreiros antes do aparecimento da imprensa. Tal conclusão é possível pelo registo da participação dos livreiros na procissão do Corpus Christi em Coimbra no ano de 1517, conforme o regimento da mesma. Somente grupos profissionais organizados e reconhecidos como tal podiam integrar este cortejo religioso. No primeiro quartel de quinhentos havia em Coimbra um grupo mais ou menos numeroso de livreiros, quando ainda não se conhecia a existência da imprensa na cidade e ainda estava longe a transferência definitiva da Universidade, ocorrida em 1537 (Loureiro, 1954, p. 69). Se ainda não existia a produção do livro impresso em Coimbra, pelo menos em quantidades suficientes para suportar uma actividade totalmente dedicada ao seu comércio, a presença de livreiros na cidade estaria certamente associada à comercialização e encadernação de textos manuscritos, (Ibid., p. 69) realidade que perdurou até ao século XIX (Belo, 2001, p. 32).
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Com o desenvolvimento da imprensa ao longo do século XVI o termo “livreiro” e “impressor” muitas vezes confundem-se, não obstante constituírem-se progressivamente em actividades distintas. O impressor define-se como o fabricante de livros, o impressor do texto. Por outro lado, o livreiro é o profissional responsável pela sua comercialização, pela compra e venda e nesse sentido é muitas vezes designado por “mercador de livros”, expressão usada pelo menos até ao final do século XVIII. Muitos impressores, talvez a maioria, nos primeiros tempos da imprensa dedicavam-se à venda dos livros impressos nas suas oficinas tipográficas e deste modo exerciam simultaneamente a actividade de livreiros. É recorrente a sobreposição das duas práticas no mesmo indivíduo, situação que levou o livreiro a ser classificado como um ofício mecânico e como tal sujeito às disposições legais das autoridades laborais do Antigo Regime.
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Havia no entanto alguns livreiros “puros”, mercadores de livros exclusivamente dedicados à compra e venda dos livros. Alguns nomes surgem nas folhas de rosto de obras de grande potencial comercial, como patrocinadores das edições. A expressão À custa de João de Espanha surge em impressões de 1572, 1575, 1580 e 1590 e À custa de João de Espanha e Miguel de Arenas aparece em 1591, entre outros exemplos. João de Espanha também conhecido por João Molina era confrade da Irmandade de Santa Catarina, a confraria dos livreiros, da qual foi tesoureiro em 1577-78. É qualificado como livreiro em certos documentos e noutros como mercador de livros. Durante mais de vinte anos patrocinou cinco edições da Imagem da Vida Cristã de Fr. Heitor Pinto, uma obra bastante popular no Portugal quinhentista (Anselmo, 1997, p. 52-53). Para além de João de Espanha mais exemplos da existência de mercadores de livros podiam ser dados, como os de António Corvete que financiou a edições da obra do Fr. Heitor Pinto em 1565 e 1567. Porém, esta realidade constituía mais a excepção do que propriamente a regra. O mais comum era o impressor ser o próprio vendedor das obras impressas na sua tipografia, muitas vezes numa tenda anexa à oficina.
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Esta concentração de actividades fez com que no século XVI o qualitativo profissional de livreiro se atribuísse indistintamente a impressores, encadernadores e mercadores de livros. Era inexistente uma classificação profissional rígida no meio da produção e comercialização do livro. Ainda em quinhentos, estabeleceu-se um outro significado para livreiro. O vocábulo surge em algumas ocasiões no contexto das bibliotecas conventuais, com as funções e requisitos inerentes da actividade de bibliotecário. Prova disso são as Constituições da Congregação dos Lóios da Ordem de S. João Baptista, de 1540, onde no capítulo XCI estão especificadas as funções do ofício do livreiro conventual. Exigia-se que fosse «irmão que seja latino se poder fazer tenha cuidado de todos os livros de cada casa postos nas livrarias per hordem em seus lugares». Além disso, o livreiro conventual zelava pelo bom estado de conservação das obras, controlava a circulação dos livros destinados à leitura e mantinha um registo actualizado das existências da biblioteca [1]. Neste caso livreiro significa bibliotecário. Ainda em 1617 surge nas Constituições da Ordem de S. Paulo o termo livreiro para designar o bibliotecário do convento [2]. Temos em suma quatro significados para o ofício de livreiro no século XVI: o livreiro enquanto impressor, livreiro enquanto encadernador, livreiro enquanto mercador de livros e em algumas circunstâncias, livreiro enquanto bibliotecário. Por vezes assiste-se à sobreposição de funções no mesmo indivíduo.
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A situação vai evoluindo ao longo de quinhentos, até se verificar uma separação profissional e orgânica dos vários ofícios do livro. Testemunho desta realidade em mudança é o episódio ocorrido com o tipógrafo lisboeta António Álvares, quando este pede autorização à Câmara de Lisboa para estabelecer uma loja de livreiro. Justifica o seu pedido pelo facto de possuir muitos livros na sua tipografia e em Castela, estando estes a degredarem-se com muito prejuízo para ele. A Câmara de Lisboa indeferiu o pedido, alegando que para abrir ao público uma loja de livros era necessário um exame prévio às suas competências técnicas de aspirante a livreiro (Ibid., 1997, p. 54), tal como previa o regimento dos livreiros redigido em 1572. Este caso demonstra bem como a profissão de livreiro tinha evoluído com as suas próprias especificidades, distintas das especificidades técnicas do impressor. Livreiro poderia ser igualmente um artesão encadernador, sem qualquer vínculo à compra e venda de livros, simplesmente alguém encarregado de coser os cadernos e encaderná-los, para depois serem comercializados sob a forma de livro.
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Com efeito, existem diferentes realidades paralelas de um mesmo universo, que gradualmente se vão separando e clarificando. O impressor, proprietário da oficina tipográfica e vendedor das obra que imprime. O livreiro, na maioria dos casos impressor, com um saber fazer específico relativo à encadernação dos livros, com aptidões examinadas para lhe ser reconhecida a competência para o exercício do ofício de livreiro, e não nos esqueçamos do livreiro com atributos de bibliotecário, como ocorre em algumas bibliotecas conventuais. Por fim há o mercador de livros, dedicado em exclusivo ao comércio do livro, num sentido mais aproximado ao como se entende hoje o profissional livreiro, investidor no financiamento das edições das obras de grande consumo e popularidade, algumas autênticos best sellers.

Frequentemente o impressor era em simultâneo livreiro, ou seja, vendedor dos livros impressos na sua oficina tipográfica, situação ilustrada na imagem da obra Grand danse macabre des hommes et des femmes, Lyon: M. Husz, 1499 Fonte: (Febvre; Martin, 2000, p. 79)

Os privilégios

Nem todos os livreiros usufruíam das mesmas condições de trabalho. Para além da capacidade financeira de cada um, existiam os privilégios. Os privilégios eram concedidos pelas instituições de poder da época e consistiam basicamente em determinadas regalias económicas, especialmente isenções fiscais. Havia no entanto um privilégio certamente bastante cobiçado no meio livreiro: o exclusivo da impressão e comercialização das obras mandadas imprimir pelas várias entidades jurídicas do reino. Haviam os livreiros do Rei, da Rainha, dos Infantes, dos Bispos, das Ordens Militares e os da Universidade. De acordo com a petição de 1610 de um livreiro real, Belchior de Faria sabe-se que a principal prerrogativa de tal privilégio era a exclusividade de impressão e venda das leis emanada do poder real (Guedes, 1993, p. 133). Podiam ter também o privilégio de fornecer livros às Instituições do reino, como teve o livreiro do rei, João de Borgonha. João de Borgonha teve ainda o privilégio em 1550 de ser o único fornecedor dos livros brancos necessários à Casa da Índia e da Mina e aos armazéns e alfândegas de Lisboa.

Depois dos livreiros reais, os mais privilegiados eram os livreiros da Universidade de Coimbra. Dois anos após a instalação definitiva da Universidade naquela cidade (1539) D. João III determina que «os livreiros [...] tiverem suas tendas com cópia dos livros das ciências que na dita Universidade se lêem, gozem de todos os privilégios e liberdades que têm e de que gozem os estudantes e oficiais da dita Universidade». Para se atribuir o estatuto de privilegiado o Reitor e o Conselho da Universidade visitavam as tendas dos livreiros e aqueles que possuíssem as ditas cópias dos ditos livros eram registados e passada uma certidão comprovativa do privilégio de livreiro da Universidade. Bianualmente era feita esta visita e se algum livreiro da Universidade não tivesse na sua tenda as cópias dos livros estudados na Universidade perdia o seu privilégio. Esta fiscalização obrigava os livreiros a possuírem uma oferta bibliográfica actualizada. Os privilégios dos livreiros da Universidade eram bastantes: direito a um juiz em todas as causas jurídicas (cíveis e crime), isenção de impostos municipais, isenção de servir em determinados ofícios do concelho contra sua vontade, isenção de ir à guerra ou de fazer parte da milícia, proibição de lhes serem requisitados pelas autoridades bens materiais tais como casas, cama, vestuário, mantimentos, carros, animais ou qualquer outra coisa sem o seu consentimento, mesmo para uso de soldados ou para a justiça e magistrados do rei, entre outras regalias. Em 1597 o Estatuto da Universidade de Coimbra estabelece em quatro as tendas de livreiros da Universidade com «cabedal de livros conveniente» e duas impressoras (Ibid., p. 34).

Existiam ainda os livreiros estrangeiros, que pela sua naturalidade ficavam automaticamente privilegiados. As cartas de segurança real davam garantias de segurança a todo o estrangeiro que quisesse exercer a sua actividade em Portugal. Sob a protecção real os seus bens não podiam ser penhorados nem podiam ser vítimas de nenhuma represália mesmo que o seu reino da sua naturalidade estivesse em guerra com Portugal. Estas medidas de segurança faziam parte de uma política de fixação de mesteirais e operários especializados em certos ofícios ainda não muito desenvolvidos no nosso reino como se verificou nos incentivos dados pelo 3º Conde de Ericeira no âmbito da sua política de implementação de indústrias em Portugal.
Outro tipo de privilégio abrangia indirectamente os livreiros na medida em que muitos deles eram simultaneamente impressores. Não raras vezes eram-lhes dados privilégios de impressão e venda exclusiva de obras durante um determinado período, normalmente 10 anos. Nestes privilégios, durante o século XVI e XVII, regista-se uma predominância de livros litúrgicos, jurídicos, escolares, de medicina, calendários e folhinhas, enfim, obras de venda certa (Anselmo, 1997, p.62).

1 comentário:

Unknown disse...

Olá, poderia me enviar os textos teóricos utilizados? quais as referências completas?