Algumas características do meio livreiro português no século XVIII

Produção editorial deficitária
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A partir de meados do século XVII assiste-se a uma substancial diferença na produção editorial entre a Europa central e setentrional (Protestante) e a Europa do sul (Católica). Na Europa Protestante a produção impressa é maior, mais barata e a sua circulação mais rápida e intensiva, ao passo que na Europa da Contra Reforma tal não ocorre da mesma forma. Por exemplo, Veneza, grande centro editorial do Renascimento, vê-se ultrapassada pelos centros impressores do norte e centro da Europa como Lyon, Leipzig e Amsterdão (Febvre; Martin, 2000, p. 260-263). De referir que no sul da Europa apenas o centro e norte de Itália desenvolveu grandes focos de produção editorial, sobretudo no séculos XV e na 1.ª metade do XVI, isto é, ao longo do período renascentista (Ibid., p. 245-250). Devido a uma conjugação de factores de vária ordem, entre os quais tiragens muito limitadas, altos custos de impressão, de matéria-prima, mercado de consumo muito restricto e o peso da censura inquisitorial (Marquilhas, 2000, p. 152-156), a produção editorial da Europa meridional não conseguio acompanhar o ritmo de crescimento dos países norte europeus, especialmente da Alemanha, França, Holanda e Suíça. Estes produziam a preços competitivos, resultando na importação de livros do estrangeiro que por sua vez contribuía para a diminuição da produção editorial portuguesa, espanhola e italiana. A Europa do sul, muito em particular a Península Ibérica e a Balcânica situava-se na periferia da produção editorial europeia do século XVIII, e naturalmente Portugal não constitui a excepção (Belo, 2001). O progressivo aumento da procura do livro estrangeiro, principalmente em língua francesa, aliado ao estado deficitário de edição nacional foi propício para que se fixassem em Portugal livreiros estrangeiros. Estes importavam grandes remessas de obras de autores populares e rapidamente tomaram conta do mercado e dos circuitos de distribuição nas principais cidades portuguesas. Quando Grasset, um dos maiores livreiros de Lausanne, em 1754 escreve ao director – geral da livraria em França sobre o negócio do livros na península Ibérica e Itálica descreve o seguinte: «O comércio da livraria em Espanha e Portugal, tal como o de muitas cidades de Itália está quase todo na mão dos franceses, todos eles saídos de uma aldeia situada num vale do Briançonnais, no Delfinado» (Caeiro, 1980, p. 150). Gresset relata também que numa viagem efectuada em 1755 aos seus clientes livreiros em Espanha, lhe foram pedidos 88 000 livros e numa outra viagem em 1762 que incluiu a visita a cidades portuguesas perto da fronteira foram-lhe encomendados 60 000 títulos (Bonnant, 1960, p. 198-199).
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Multiplicidade de agentes comerciais
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Até ao século XVIII o ofício de livreiro era exclusivo a quem ficasse habilitado no exame de aptidão técnica efectuado pelos oficiais da corporação dos livreiros. Em setecentos o cenário já não é bem o mesmo. Além dos livreiros reconhecidos pela corporação existiam outros agentes no negócio do livro. Os próprios autores frequentemente podiam vender as suas obras. Os conventos muitas vezes vendiam nas portarias os livros escritos pelos frades. Havia estrangeiros que transportavam pequenas quantidades de livros de Espanha, vendendo-os no estabelecimento de algum compatriota ou na estalagem onde pernoitavam. Existiam ainda uma panóplia de pessoas ligadas ao comércio do livro como é o caso do bibliotecário do Cardeal Patriarca D. Tomás, tradutores, editores ocasionais e os cegos que negociavam com maior ou menor regularidade. Apesar desta enorme variedade de agentes de comercialização do livro e da folha impressa, é possível fazer uma arrumação deste universo um tanto ou quanto complexo e definir várias categorias de agentes comerciais. Em maior número existem os livreiros aprovados pela corporação do ofício segundo os ditames do regimento, com representação na Casa dos Vinte e Quatro. Temos os livreiros estrangeiros estabelecidos à sombra dos privilégios concedidos a súbditos das nações estrangeiras. Eram mercadores de livros com “cabedais” que importavam grandes quantidades de livros. A sua actividade era reconhecida pelas autoridades, tendo no entanto algumas limitações relativamente aos livreiros nacionais. Estavam condicionados pela norma do regimento de 1572 e de 1733 que imponha aos livreiros estrangeiros a venda de livros por grosso e não à unidade (Guedes, 1993, p. 74). Esta regulamentação foi no entanto perdendo a eficácia devido à lei de D. João V de 1735 permitindo a venda em lojas aos livreiros estrangeiros residentes na Corte. Uma outra restrição imposta aos livreiros estrangeiros foi a lei de 1771 onde explicita que só os livros não encadernados estavam autorizados a serem vendidos nas lojas dos livreiros estrangeiros. Agentes de comercialização eram também os cegos da Irmandade do Menino Jesus dos Homens Cegos que se dedicavam à venda de folhas, papéis volantes, panfletos, nas ruas, nas festas e nas feiras. A partir do reinado de D. João V, obtiveram o monopólio da venda das folhas volantes, de pequenos livros (inferiores a 4º), de livros usados e livros não superiores a 120 réis. Finalmente, um quarto agente, o menos homogéneo, os vendedores em geral, abrangendo esta categoria pessoas que frequentemente recorriam à venda ilegal e em regime de complementaridade à sua actividade principal, ladrões e traficantes de livros clandestinos, sem tenda nem lugar fixo, vendendo de porta em porta, no vão das escadas, nas escadarias da igrejas e nos largos públicos (Domingos, 1999, p. 55-59).

Os cegos da Irmandade do Menino Jesus dos Homens Cegos vendiam folhas volantes em Lisboa e pela província. Litografia. Macphail. Lith. de Manuel Luiz da Costa R. N. dos Montes, n.º 12 LX.ª 1841. Fonte: (Domingos, 1999)
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Conflitualidade entre agentes comerciais
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A profusão de agentes comerciais concorrenciais inseridos num mercado de pequenas dimensões iria necessáriamente causar animosidades. Antigo é o queixume dos livreiros da corporação sobre os livreiros estrangeiros. Num documento da Real Mesa Censória enviado ao rei em 1771 é dado a conhecer um conflito entre os juízes do ofício de livreiro e alguns livreiros franceses ocorrido no já longínquo ano de 1711. Dois juízes do ofício acusaram dois livreiros franceses de adquirirem grandes quantidades de livros fora do reino e os venderem à unidade contrariamente ao regulamentado no regimento. Nessa ocasião os juízes do ofício ganharam a causa. Em 1749 e 1757 os livreiros estrangeiros voltam a ser acusados de desobediência ao regulamento, com o argumento de terem os livreiros portugueses na sua posse licenças do Senado da Câmara de Lisboa que não permitia aos estrangeiros a venda ambulante. O conflito não se dirigia só contra os estrangeiros mas também contra outros agentes a operarem no mercado. A partir do reinado de D. João V os livreiros da corporação reclamavam contra a Irmandade do Menino Jesus dos Homens Cegos de não obedecerem ao privilégio dado pelo monarca. Os cegos de Lisboa, organizados nesta confraria foram privilegiados por D. João V com o monopólio da venda de folhas volantes e de pequenos livros. Porém, os livreiros da corporação denuciavam abusos ao privilégio, porque vendiam livros de grandes dimensões pelas portas e os vendedores de livros em geral estavam-lhes a seguir o exemplo (Ibid., p. 59). Na altercação de 1771 os livreiros portugueses levaram a melhor, porque a Real Mesa Censória decretou a proibição de importação de livros encadernados, medida altamente lesiva dos interesses dos mercadores de livros franceses. Mesmo assim, esta decisão não apaziguou o conflito. Passados 22 anos, em 1793 novamente os livreiros da corporação se queixam do incumprimento do regimento de 1733 e da medida emanada pela Real Mesa Censória em 1771. Por sua vez os livreiros estrangeiros contra atacavam escrevendo à rainha para esta tomar a sua voz na defesa dos seus interesses comerciais. Este conflito não deixa de ser um sinal dos tempos, a lenta mas irreversível desagregação do Antigo Regime. Um grupo profissional protegido pelos direitos e prerrogativas de uma corporação secular ameaçado por dimânicas de agentes exteriores, controladores dos circuitos de distribuição do produto (Ibid., p. 66). Ainda em 1799 há notícia de um novo momento de tensão entre os livreiros da corporação e os livreiros franceses. Desta vez, os juízes de ofício de livreiro enviam um requerimento à Junta do Comércio, onde denunciam os mercadores franceses Paulo Martin e Francisco Rolland de lhes quererem aumentar o prejuízo ao intencionarem abrir duas livrarias no Rio de Janeiro, usando para isso a estratégia de as colocarem na posse dos seus filhos, nascidos e naturalizados portugueses. O final desta história acabou com a abertura de uma livraria no Rio de Janeiro em 1808 na casa de Paulo Martin Filho (Guedes, 1987, p. 113).
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Bibliografia:
BELO, André (2001) - As Gazetas e os Livros: a Gazeta de Lisboa e a vulgarização do impresso (1715-1760), Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
BONNANT, Georges (1960) – Les libraries du Portugal ao XVIII siécle vus à travers leurs ralations d affaires avec leurs fournisseurs de Genéve, Lausanne et Neuchâtel in Arquivo Bibliográfico Português. Lisboa, n.º 23-24
CAEIRO, F. Gama (1980) - Livros e Livreiros franceses em Lisboa nos fins de setecentos e no 1º quartel do século XIX. Sep. do Boletim Bibliográfico da Universidade de Coimbra, Coimbra, vol. 35
DOMINGOS, Manuela (1999). – Livreiros de setecentos. Lisboa: Biblioteca Nacional
FEBVRE, Lucien; MARTIN, Henri-Jean (2000) - O aparecimento do livro, rev. científica de Artur Anselmo. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian
Guedes, Fernando (1987) – O livro e a leitura em Portugal: subsídios para a sua História (séculos XVIII e XIX). Lisboa: Verbo
Idem, (1993) - Os livreiros em Portugal e as suas associações desde do século XV até aos nossos dias. Lisboa: Verbo
MARQUILHAS, Rita (2000) – Produção, circulação e consumo do livro em Portugal do século XVII: as actividades de impressão, comércio e leitura de livros documentados nas fontes inquisitoriais. In Faculdade de letras: leitura e escrita em Portugal do século XVII. Lisboa: IN-CM

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