O Real Hospital de Todos os Santos: do terramoto à demolição (1755 - 1775) II

2 - A Igreja do Hospital Real de Todos os Santos
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A reconstrução não de dirigiu unicamente para as áreas que à partida seriam as mais prioritárias, as enfermarias. Foi reedificada também a Igreja, detentora de uma funcionalidade de primeira ordem para o universo mental da época, sobretudo objectivando a assistência espiritual aos enfermos e a realização de missas pela alma dos instituidores das capelas. A 30 de Dezembro de 1756, o provimento para o preenchimento de um lugar vago numa das capelas da Igreja pressupõe alguma actividade neste espaço, pouco mais de um ano após a sua destruição [10]. De acordo com o documento, pelo menos no final de 1756 estava restabelecido o serviço religioso na Igreja, tendo no mínimo um padre para as missas quotidianas. Do ponto de vista arquitectónico, a Igreja tinha mais altares para além do mencionado; o altar da Nossa Senhora da Paz, pois «estando [o Padre José da Fonseca] empedido [de dar missa] / em outro qualquer [altar] da mesma Igreja pella alma do Instetu / hidor […]». Possivelmente estes altares já estariam recuperados em data anterior, ainda em vida do Padre Francisco António de Araújo, ou até poderiam não ter sofrido grandes danos com o terramoto e o incêndio.
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As obras eram de carácter provisório enquanto não se executavam as obras definitivas. A 7 de Outubro de 1758 as obras definitivas ainda não tinham arrancado, embora o Enfermeiro – Mór estivesse na expectativa do seu início para breve. Entretanto eram providos mais Padres Capelães para ministrarem os ofícios divinos nas capelas dos instituidores, indicador do aumento da actividade religiosa na Igreja [11].
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Em Outubro de 1758 estava para breve as obras de construção da nova Igreja do Hospital Real de Todos os Santos (HRTS). Depreende-se também que a construção de altares provisórios continua, pois há registo de mais um, este dedicado a N. Sra. da Luz, bem como a outros dois (dedicados a S. Jorge e ao Anjo Custódio) referidos na provisões passadas nos dias 11 e 17 de Outubro de 1758 [12]. Assim, o ponto da situação em Outubro de 1758 era perspectivarem-se para breve (o termo é um tanto ou quanto vago) a reedificação da nova Igreja, enquanto se tinham construído no triénio 1755-58 4 altares.
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No entanto as obras da nova Igreja nunca se realizaram. Não era uma prioridade? Faltaram os meios financeiros para levar a cabo tal projecto? Com a doação do Colégio de Santo Antão em 1767, outrora pertença da Companhia de Jesus [13] é natural que não houvesse mais a necessidade de efectuar obras de grande monta no velho edifício, evitando-se assim o gasto das verbas destinadas à adaptação das instalações adquiridas para o futuro hospital.
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Apenas as pequenas obras de remedeio, provisórias, foram-se sucedendo ano após ano, até finalmente a velha Igreja, renascida dos escombros e cinzas, poder apresentar alguma dignidade material e comodidade para o serviço religioso. Manifestação desta dignidade é a notícia que obtivemos através de uma folha de credores de ordenados de 1765 (indicador uma situação financeira débil), onde está estipulado o ordenado do Padre Vicente, organista da Igreja do HRTS [14]. Dez anos depois a Igreja continuava a possuir o órgão conforme o livro de despesas da Igreja, onde se incluíam a verba paga a Manuel da Costa Tavares, a propósito do concerto do órgão da Igreja em Outubro de 1770 [15]. O facto da Igreja possuir um órgão indica uma continuidade do esforço de reedificação da Igreja, sem no entanto se proceder a uma reconstrução de raiz do templo.

Fachada principal do Hospital Real de Todos os Santos, voltada para a praça do Rossio. Destaca-se ao cimo da escadaria a fachada manuelina da igreja do hospital. Desenho do séc. XVIII, colecção Prof. Dr. Jaime Celestino da Costa.
(fonte: Nobreza de Portugal, Lisboa: Editorial Enciclopédia Ldª, 1960, p. 360.)
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3 - Obras contínuas
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Provavelmente não foi só na Igreja onde se verificaram os arranjos. Obras ao longo de muitos anos levam-nos a concluir que na realidade nunca chegou a haver uma reconstrução total e definitiva do edifício, mas sim arranjos, recuperação de estruturas reminiscentes e alguns acrescentos novos. A presença de mestres carpinteiros, mestres pedreiros e mestre pintores nestas obras desde de 27 de Setembro de 1758 está comprovada pelas ordens do Enfermeiro-Mór dadas ao talhante do HRTS, no sentido de este lhes fornecer a carne pelo mesmo preço praticado aos funcionários do HRTS [16]. A mesma ordem, com a mesma data, também se verifica para o mestre carpinteiro António Rodrigues Gil [17] e para o mestre pintor Manuel Gonçalves Vital, que em Outubro de 1758 pintava a casa da fazenda do HRTS [18].
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Implicitamente estas ordens revelam alguma resistência do talhante em fornecer carne aos mestres-de-obras talvez por estes não pertencerem ao quadro de funcionários do HRTS, visto que uma das regalias dos funcionários hospitalares era o acesso à carne por preços mais baratos. O dar-se licença aos mestres-de-obras para terem acesso à carne pelos mesmos preços praticados aos funcionários significa que teriam um estatuto semelhante ao dos funcionários. Uma outra ordem emitida pelo Enfermeiro-Mór revela a mesma tendência de conferir um estatuto semelhante aos funcionários do HRTS aos mestres-de-obras [19].
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A equiparação dos mestres-de-obras aos demais funcionários hospitalares só se justifica com a necessidade de aqueles permanecerem por muito tempo nas obras do HRTS. O documento anteriormente mencionado mostra que em 1761 o mesmo mestre carpinteiro António Rodrigues Gil ainda trabalhava no HRTS, e 14 anos passados sobre o terramoto, em 1769, há registo das intervenções do mesmo mestre pedreiro antes referido, Francisco Xavier Pinto [20]. A presença destes mestres-de-obras evidencia uma reconstrução permanente do edifício até ao seu abandono em 1775, aquando da transferência de instalações para o Colégio de Santo Antão.
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[10] ANTT, Hospital S. José, liv. 943, fol. 18
[11] ANTT, Hospital S. José, liv. 943, fol. 35 v.
[12] ANTT, Hospital S. José, liv. 943, fol. 38 v., 41.
[13] ANTT, Hospital S. José, liv. 2703, fol. 16
[14] ANTT, Hospital S. José, liv. 2914, fol. 1
[15] ANTT, Hospital S. José, liv. 4381, pág. 39
[16] ANTT, Hospital S. José, liv. 943, fol. 34
[17] ANTT, Hospital S. José, liv.943, fol. 34
[18] ANTT, Hospital S. José, liv. 943, fol. 35 v.
[19] ANTT, Hospital S. José, liv. 1104
[20] ANTT, Hospital S. José, liv. 4381, pág. 92

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