D. Manuel Caetano de Sousa e as bibliotecas de Itália em 1710 II

Passou a ver a Livraria do Grão Duque [de Florença]. He huma casa não muito grande, com nove ordens de livros, e no meio com tres grandes bofetes, em que estavão livros de estampas, e outros, que por sua grandeza não cabião nas estantes. Aqui estavão tambem algumas Arvores Geneologicas, e huma da Casa de França, e Baviera. Estava tambem huma das Ascendencias, e Descendencias da Casa de Medicis. Tem varanda á roda, como a da Annunciada, e S. Jeronymo, para a qual se sobe por huma escada de pedra, que fica fóra da Livraria; e tem seus armarios, em que os livros prohibidos estão fechados. As estantes todas tem redes de arame, com que tambem estão fechadas. Tem muitos livros modernos, e excellentes; e entre os que tratão de Historia, alli estavão muitos dos que tratão da Historia de Portugal, e entre estes o Nobiliario do Conde D. Pedro. Tem muitos manuscriptos, entre estes os originaes de Nicoláo Machiavello: o que se intitula o Principe, he volume in 4.º. A Historia de Florença he em folha, dedicada ao Papa Clemente VII. Muitos livros (e disse Magliabechi serem mais de dous mil) escritos em linguas Orientaes; e todos, ou quasi todos em encadernações muito estranhas, que mostrão serem feitos nas mesmas terras, em cujas linguas forão escritos. Muitos livros impressos em pergaminho, entre os quaes se via o Concilio Tridentino da edição de Manucio; e a vida de Leão X escrita por Paulo Jovio. As materias estavão separadas. Junto a esta casa havia sete casas cheias de livros por encadernar. No mais interior do Palacio ha outra Livraria, a qual, como diz o Cardeal de Noris, na Dedicatoria do seu livro intitulado Marmora Pisana, não consta mais que de livros Sagrados, e Authores Ecclesiasticos. Em hum dos referidos bofetes estavão vinte e dous Tomos de estampas, em que se representão as principaes acções da vida do Christianissimo Rei Luiz XIV. Para esta Bibliotheca diz o Padre D. Virginio Valsechi, Monge Benedictino, no seu Tratado De M. Aurelii Antonini Elagabali Tribunitia Potestate V. Dissertatio Historico-Chronologica, impresso em Florença anno 1711 que o Grão Duque Cosme III levára de Hespanha para Florença treze mil e trezentas Medalhas, com que enriqueceo a sua galeria: de que se póde inferir a grandeza de Hespanha, e o descuido, ou inercia de seus habitadores. Ve Giornale dé Letterati d’Italia, Tom. 7. an 1711. art. 7. pag. 57. […]
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Em Santa Maria in Campitello, [Roma] Casa dos Clerigos Regulares [...] estando na Livraria, que se compõe de muitos, e excellentes livros, vio hum manuscripto de boa letra, e bem illuminado em pergaminho, o qual erão as obras de Tito Livio. He esta Livraria insigne pelo grande numero de manuscriptos, que em si contém, de materias assim Canonicas, como Politicas, que forão do Cardeal Francoto, e outros. [...]
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No seguinte dia [2 de Março de 1710] foi a Santa Maria della Valicella, Casa dos Padres do Oratorio, a assistir a huma representação [...]. A Livraria tambem he insigne, com quatorze ordens de livros, separadas com huma varanda: em hum armario de vidraças estão os livros, de que usou S. Filippe Neri. [...] De tarde foi á Minerva a ver a Livraria; e diz que he tão grande, que para se comprehender, necessita ser vista mais de huma vez. […]
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Em 14 [Março de 1710] foi a Casa do Cardeal Imperiali para ver a sua famosa Livraria, que não vio por não estar em casa o seu Biblithecario o Abbade Justo Fontanini. Em companhia deste foi a casa do Cardeal Imperiali a ver a sua Livraria, que o seu Bibliothecario o Abadde Fontanini com suma attenção, e afabilidade lhe fez patente [...] Desta Bibliotheca se acha impresso o Catalogo em hum Tomo in fol. Cart. magn. em Roma anno 1711 por Francisco Gonzaga, obra neste genero muito estimada. […] e em 23 foi ver o Palacio do Principe Barbarini. [...] Vio a Livraria , que he copiosissima; e á entrada para esta se acha huma pequena casa, cujas paredes de alto a baixo se vem cubertas de retratos dos homens mais insignes do presente tempo [...]. A principal casa da Livraria he muito grande, e tem varanda : tem duas ordens de bofetes, que a deixão como dividida em tres corredores. No meio, em que há maior largura, se vem sobre bem lavradas bases grandes, e varias esferas, assim celestes, como armillares; e no corredor do meio estão duas estantes para sustentar livros de singular artificio. Huma destas he como a de Alcobaça, que roda sem deixar cahir os livros. He esta Bibliotheca, que juntou o Cardeal Francisco Barbarini, Vice-Cancellario da Igreja, tão copiosa, que o seu indice comprehendendo sómente os livros impressos, se vê impresso em tres Tomos in fol. & chart. maj. Romae, Typis Barbarinis excudebat Michael Hercules anno 1681. Entrando pela dita casa, á mão direita se vê hum grande armario: está este cheio de preciosos livros, huns de letras recortadas, outros escritos em linguas Orientaes, e outros em papel da China, e quasi todos ricamente encadernados. Aqui se acha em huma caixa certa especie de amianto, ou papel incombustivel: á mão esquerda, entrando na referida casa, e em correspondencia do sobredito armario, ha huma porta, que dá serventia para huma casa, a qual está cheia de armarios, em que se conservão rarissimos, e preciosissimos manuscriptos. Defronte da porta, que fica no meio do lado da grande Livraria, está outra em lado opposto, que dá entrada para outra casa, a qual está tambem cheia de livros , e aqui estavão alguns pertencentes á Historia de Portugal. [...] Desta casa se passa a hum pequeno Gabinete, ou Museo, em que se vem inumeraveis antigalhas, idolos de bronze, lucernas antigas, [...]. Ha neste Palacio aposentos para todas as estações do anno: a do Estio tem muitas fontes, e columnas de pedras; e entre estas se conservão por memoria quatro columnas Salomonicas, que servírão no tumulo honorario, que em Roma se fez para as exequias de Jacome II Rei de Inglaterra, as quaes lhe fizerão lembrar as que o Conde da Ericeira tinha na sua Livraria, e servirão para o tumulo nas exequias do Padre Antonio Vieira. Visitou depois o Cardeal Ottoboni, a quem agradeceo a licença que lhe mandára para ler livros prohibidos sem alguma limitação. Na Livraria de seu Auditor o Abbade Venturini, diz o Padre Sousa, víra a primeira vez os livros De Inconstancia in Judiciis, et Inconstantia in Fide, fol. Tom. II que escreveo o Cardeal Albizio; nota que bem indica a sua raridade.
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Foi ao Mosteiro da Cartuxa, aonde encontrou o Cardeal Imperiali, a quem disse, que alli o conduzíra o desejo de mostrar ao seu companheiro aquella grande Casa. Porque eu (disse o Padre Sousa) depois que vi a Livraria de Vossa Eminencia, perdi as esperanças de encontrar em Roma outra alguma cousa, que pudesse excitar a curiosidade, por ser esta a maior maravilha que tinha visto em Roma. Não desagradou ao Cardeal a expressão, e respondeo, que estimára muito que o seu Bibliothecario o tivesse servido, mostrando-lhe a Livraria. Ao que o Padre Sousa replicou, que o Abbade Fontanini seu Bibliothecario lhe tinha mostrado duas Livrarias: huma estavel, que era a de sua Eminencia; e outra deambulante, que era o mesmo Abbade. […]
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Em casa do Cavalheiro Mandosio soube que no dia antecedente elle o tinha buscado, e que lhe trazia huns Tomos da Bibliotheca Volante de Cinelli. Na verdade era cousa para desejar, que havendo tantos, que tem dado á luz noticia das obras grandes, que escrevêrão os Authores, assim antigos, como modernos, houvesse tambem algum, que tomasse o cuidado de fazer menção daquelles tratados e composições, que pela sua pequenez ou são totalmente desconhecidos, ou desprezados, talvez com injúria grande de Authores muito celebres, dos quaes o mais pequeno fragmento he precioso. A semelhante Colleção deo principio em Florença o Doutor João Cinelli Calvoli com o titulo de Bibliotheca Volante, por entrarem nella sómente obras volantes, isto he, Opusculos, cujo corpo não inclue mais de seis folhas, a qual obra se principiou a imprimir em Florença em 1677 em 8.º e della vimos a continuação até o Tomo XIII. Semelhante trabalho tomou o Academico Carlos Cartari, Ovietano, dando-nos a noticia dos que havia no Palacio dos Senhores Altieri, debaixo do titulo Pallade Bambina, overo Bibliotheca delli Opuscoli Volanti, che si conservano nel Pallazo delli Signori Altieri, etc. Roma 1694 in 4.º O mesmo se vê na obra Fasti dell’ Academia degl’ Intrecciati...riportati dal Registro, que si conserva presso Gioseppe Carpano, etc. Roma 1673 in 4º. [...]
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Em 18 [Junho de 1710] foi a casa do Cardeal Ottoboni, e vio a sua famosa Livraria. Constava esta de huma grande casa cheia de livros manuscriptos preciosissimos; outra, e muito maior, cheia de livros impressos, repartidos estes pelas materias, não entrando nesta os Legaes, porque destes se compunha a terceira casa. A quarta comprehendia preciosissimos livros de musica; e porque esta casa era a mais retirada, nella se conservavão tambem, e cuidadosamente fechados quatorze livros de Jacobio, em que se contém noticias Geneologicas das Familias de Italia, e de summa importancia pelas origens que lhes descobre, e principio dos Feudos, os quaes o Papa Alexandre VIII ordenou que a ninguem se mostrassem, senão com huma grande cautela, e resguardo. Na segunda casa estavão tambem treze volumes manuscriptos de Pirro Liguorio, cada hum da altura do Athlas de Sanfon. Aqui se achavão varias edições de Biblias, Gregas, Latinas, Hebraicas, Poliglotas, e Vulgares. Aqui estava a Biblia de Sixto V e de duas edições, a saber, do anno 1590 e 1592 ambas em folha, e da Typografia Vaticana. Tinha os globos celeste, e terrestre, de bastante ponto, e huma esfera armilar de bronze, de mais de dous palmos de diametro, segundo o systema de Ptolomeu. Em as encadernações de muitos destes livros se lião as seguintes palavras, formadas com letras de ouro: Ad usum Reginae, por terem sido da Rainha da Suecia Christina Alexandra, a qual falecendo em Roma, os deixou ao Papa Alexandre VIII e este a seu sobrinho o Cardeal Ottoboni. Aqui se conserva tambem a Bulla original da Confirmação do Concilio Florentino, que he hum documento de summa importancia em razão dos pontos, que nelle se definírão. O Index desta Livraria se continha em quatro Tomos de folha, e em outro a dos manuscriptos. [...]
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Estando em Casa de Antonio Magliabechi, este lhe mostrou a sua Livraria, ou para melhor dizer, parte della. Constava esta de innumeraveis livros, repartidos por varias casas, e não só em estantes, mas em montes: todos erão escolhidos, e a maior parte destes modernos, muitos mandados por seus Authores a este grande Bibliothecario, e muitos a elle dedicados. A parte da Livraria, que não vio, erão seis mil volumes; até na disposição do seu aposento se reconhecia a profissão de Filosofo. […]
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[Em Milão] Indo á Igreja da Paz, fez oração ao Altar, em que está a Imagem do Beato Amadeo, inclyto Portuguez, no seculo chamado D. João da Silva Mascarenhas. Tem na mão o livro das suas revelações, e na taboa exteriorda sua encadernação se lem as seguintes palavras: Aperietur in tempore Desta obra manuscrita temos em nosso estudo huma copia, que foi do uso do célebre D. João de Castro, que acompanhou o Senhor D. Antonio Prior do Crato, e faleceo em París. […] »
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Para esta narrativa, D. Tomás Caetano de Bem, baseou-se nas memórias manuscritas de D. Manuel Caetano de Sousa. A visita às bibliotecas parece que foi o ponto alto da viagem, apesar de ser apenas um objectivo secundário, pois o objecto primordial desta era a assistência ao Capitulo Geral da Ordem. Era um amante de livros, e sobre esta paixão acrescenta-se ainda:
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« Teve grande memoria, e dos livros de seu uso tal conhecimento, que sómente pelo tacto os conhecia; e isto sendo a sua Livraria tão numerosa, que passava de sete mil volumes. Foi de tão feliz memoria, que mandando algumas vezes pedir emprestados livros, que tinha visto em outras Bibliothecas ainda mais numerosas que a de seu uso, mandava dizer o lugar, em que elles estavão. [...] Já dissemos, quão copiosa era a sua Livraria, porque para a compra de livros destinava a maior parte dos seus ordenados, e da tença que gozava. E além destes juntou muitas Memorias Mss para a Historia de Portugal, assim Politica, como Gentilicia, e principalmente para a Ecclesiastica, tanto das duas Dioceses de Lisboa, e Algarve, de cujos Prelados tinha a seu cargo na Real Academia escrever as vidas na lingua Latina; como dos Sumos Pontifices, Cardeaes, e Bispos Portuguezes, que tiverão Diocese fóra deste Reino, e suas Conquistas, de que em varias Conferencias da mesma Academia [Academia Portuguesa, instituida pelo 4º Conde da Ericeira] deo conta, e com maior individuação na Conferencia de Outubro de 1721. […] Antes de falecer desejou muito mandar pôr na Livraria commua da Casa [biblioteca do convento em Lisboa] todos os livros, que para seu estudo, e uso tinha no seu aposento. [...] Foi sempre voluntariamente pobre; e posto que tinha tenças, huma pensão Regia, e seus ordenados, tudo empregou em sua vida em esmolas, e em livros. Destes ainda em sua vida poz a maior parte na Livraria da Communidade, […] » (Caetano de Bem, 1794, p. 459, 461).
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Bibliografia:
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CAETANO DE BEM, Thomaz, D. – Memorias Historicas Chronologicas da Sagrada Religião dos Clerigos Regulares em Portugal , e suas Conquistas na India Oriental. Lisboa: na Regia Officina Typhografica, 1792-1794, 2 vol., tomo 1, p. 329 - 461
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FEBVRE, Lucien; MARTIN, Henri-Jean - O aparecimento do Livro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2000
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MOTA, Isabel Ferreira da - A Academia Real da História: os intelectuais, o poder cultural e o poder monárquico no séc. XVIII. Coimbra: Minerva, 2003
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NUOVO, Angela - Le biblioteche private (sec. XVI - XVII): storia e teoria, in La storia delle biblioteche: temi, esperienze di ricerca, problemi storiografici. Roma: Associazione Italiana Biblioteche, 2003

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