As bibliotecas perdidas de 1755

Como é do conhecimento geral, o terramoto de 1755 foi uma mega calamidade que se abateu sobre o centro e sul de Portugal. A destruição resultante fez-se sentir a vários níveis. Primeiramente foi uma tragédia humana. Segundo alguns cálculos na manhã de 1 de Novembro daquele ano teriam perecido cerca de 30 mil pessoas, só em Lisboa, sendo desconhecido o número de feridos e de inválidos subsequentes dos ferimentos. Além desta vertente humana, o terramoto foi um tremendo fenómeno de perda patrimonial. Perdeu-se bastante património arquitectónico, nomeadamente palácios, igrejas, conventos, com todo o seu recheio; mobiliário, pinturas, esculturas, tapeçarias, cerâmica, joalharia, enfim toda a cultura material de uma sociedade. No âmbito do património cultural, é de realçar a destruição do património documental, isto é, dos arquivos e das bibliotecas. Quanta documentação importante para a nossa memória colectiva se perdeu nesse dia? Teria-se a mesma visão da nossa História se esses documentos chegassem até nós? Que conhecimentos se perderam nesse dia fatídico? Desta prespectiva o 1 de Novembro de 1755 foi um dia de anti-memória e anti-História.

Ruínas da Igreja de S. Nicolau após o terramoto. Gravura da época. Seria aproximadamente este o aspecto dos edifícios que albergavam preciosas bibliotecas após 1 de Novembro de 1755. Os livros perderam-se irremediavelmente debaixo dos escombros ou queimados pelo incêndio causado pelo terramoto. Fonte URL: http://dossiers.publico.pt/dossier.asp?idCanal=1543

Este post recorda através de testemunhos contemporâneos as bibliotecas de Lisboa perdidas nesse catastrófico momento, não esquecendo os arquivos, que tiveram a mesma sorte. Joaquim José Moreira de Mendonça ao escrever sobre a causa dos terramotos, sendo-lhe cara a lição dos livros para a sua investigação recorda as perdas bibliográficas de 1755:

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«[...] Entre as muitas preciosidades, que consumiu o fogo foi muy sensivel aos Eruditos a perda de muitas, e numerosas Livrarias. Tem primeiro lugar a Bibliotheca real, que era numerosissima, e selecta. O Senhor Rey D. João V o Maximo, a tinha aumentado com grande numero de livros modernos, e todos os antigos, que se descobrirão pela Europa; e huma grande copia de bons manuscriptos, assim originaes, como copias bem escriptas, tudo effeitos da sua sabedoria, e magnificencia.

A do Marquez de Louriçal enchia, e ornava quatro grandes casas, e era selecta em livros raros, e excellentes manuscriptos. Tinha sido formada pelos Sabios Condes da Ericeira, e ultimamente aumentada, pelo Conde D. Francisco Xavier de Menezes, cuja sabedoria, e vastissima erudição, ainda depois de morto admira Portugal, e toda a Europa. A Bibliotheca do Convento de S. Domingos estava em duas grandes casas, e tinha muitos livros raros, e grande numero de manuscriptos, que para ella deixou o Eruditissimo Beneficiado Francisco Leitão Ferreira. Foi obra do Padre Fr. Manoel Guilherme, que a constituiu publica, com assistencia de dous Bibliothecarios, e renda grande para o seu aumento. No Convento do Espirito Santo havia huma grande, e selecta Livraria, e outra chamada Mariana, em que se admirava a mayor Colleção de livros, que tratassem de Maria Santissima, obra do Padre Domingos Pereira. Ficárão tambem reduzidas a cinzas as excellentes, e antigas Livrarias dos Conventos do Carmo, S. Francisco, Trindade, e Boahora. Tiverão o mesmo successo, todas as dos Palacios, que arderão, em que havia algumas muito estimaveis.

As particulares forão muitas, e entre estas era muito preciosa a do Inquisidor Simão Joseph Silveiro Lobo, por numerosa, e selecta. Em cinco casas de Mercadores de livros Francezes, Hespanhoes, e Italianos, e 25 loges, e casas de Livreiros Portugueses, se consumirão grandes Livrarias, de que se podião formar muitas copiosas, e excellentes. […] No Convento de N. Senhora da Graça, dos Eremitas do mesmo Santo, [Santo Agostinho] cahiu a sua grande Igreja, e rica Sancristia, a casa do Noviciado, e a formosissima casa da sua numerosa Bibliotheca, cujos livros tiverão muito estrago [...] » [1].

Lisbonne Abysmée. Gravura da época retratando o terramoto de 1755. Fonte URL: http://dossiers.publico.pt/dossier.asp?idCanal=1543

Joaquim José Moreira de Mendonça refere mesmo que a falta de bibliotecas atrasou a sua investigação, tendo-a concluído graças ao recurso à biblioteca da Congregação do Oratório no Palácio das Necessidades, uma das poucas que sobreviveu ao terramoto e às reminiscências documentais da biblioteca do Convento da Graça:

«Esta falta de tempo, o emprehender dar huma completa noticia dos effeitos do ultimo Terremoto (que não sei se já se findárão) e a inopia de livros, que tive no primeito anno, retardárão esta obra mais do que havia projectado. Ainda não poderia estar acabada, se desde o fim do anno de 1756 não tivesse a lição de muitos livros da numerosa, e selecta Bibliotheca da Real Casa de N. Senhora das Necessidades, aonde se admira a magnificencia do Senhor Rey D. João V sempre de gloriosa memoria. A’ urbanidade, e amor das letras dos Eruditissimos Congregados daquella Casa, devo a lição naquella grande Bibliotheca, que não está ainda colocada na formosissima Casa, que para ella se destina. Igual favor confesso dever aos Doutissimos Eremitas de Santo Agostinho, que logo que arrumárão a sua excellente livraria do Convento de N. Senhora da Graça, me admittírão nella, ainda antes de a franquearem ao publico, continuando o beneficio do seu uso, que nella introduziu o Padre Mestre Fr. Francisco de Santa Maria, hum dos grandes, e estimaveis Filhos de Santo Agostinho. A minha pequena Bibliotheca, não podia supprir as noticias, que alcancei naquelles dous Thesouros de bons livros.» [2] Um outro testemunho, este anónimo, identifica igualmente as principais bibliotecas e livrarias lisboetas destruídas pelo terramoto e o incêndio acompanhante: «[…] Certa pessoa, a quem devo [?] dar credito, por ser das de/ mayor entrada no Paço, e por cujas mãos passavão grossas/ quantidades de joyas, e dinheiro, affirmou, que em hu[m] e outro infortunio/ de fogo, e terremoto perdera o Rey dosentos e seten-/ ta milhoens!/ Ignora-se se meteria nesta conta a famosa Biblioteca Real composta de 30 mil volumes, alem dos manus-/ critos políticos de Ministros, q tinhão servido nas maiores cortes da Europa, com os originaes de quasi todos os S.tos/ Padres transcriptos por muitos amanuenses, q para este/ effeito sustentou a expensas suas na livraria do Vatica [sic]/ o grande Rey D. João 5º p.ª cujo extracto tinha concedido faculdade o Summo Pontífice Clemente 12º.

Assim mesmo acabarão as inextima-/ veis livrarias dos conventos de S. Domingos e S. Fran[cis]co/ do Duque de Lafoens, do Duque do Cadaval, do Conde de/ Vimieiro, as dos Desembargadores João Alvares da Costa/ Alexandre Ferreira, Monsenhor Pegado, as dos Doutores Francisco Xavier da Silva e José Caldeira; as dos con-/ tratadores de livros, Mons. Reiscend Mons. Faure, Miguel/ Rodrigues, Manuel Carvalho; e outras muitas de menos/ nome; porq[ue] tão bem as livrarias estavão em moda, e sem este a/ pendiculo [?] não se julgava bem ornada qualquer casa, ainda/ q fosse medianna! Junta com as mayores acabou a da casa/ da Ericeira, hoje Marqueses do Louriçal!» [3]

Estes testemunhos (e mais haverão com certeza) dão-nos apenas uma pequena noção do fabuloso património documental perdido: códices medievais únicos ou rarissímos, incunábulos, cimélios, manuscritos sobre as mais diversas matérias, etc... Praticamente nada restou, as bibliotecas de Lisboa tiveram de recomeçar os seus fundos bibliográficos do nada.

Notas:

[1] MENDONÇA, Joachim Joseph Moreira de – Historia Universal dos Terremotos, que tem havido no Mundo, de que ha noticia, desde a sua creaçaõ até o seculo presente. Com huma narraçam individual do Terremoto do primeiro de Novembro de 1755, e noticia verdadeira dos seus effeitos em Lisboa, todo Portugal, Algarves, e mais partes da Europa, Africa, América, aonde se estendeu: e huma dissertaçaõ phisica sobre as causas geraes dos Terremotos, seus effeitos, differenças, e Prognosticos; e as particulares do ultimo. Lisboa: na Offic. de Antonio Vicente da Silva, 1758, p. 129 - 131.

[2] Ibid., p. 3.

[3] Relação do horrível e espantozo terremoto que padeceu o Reino de Portugal com especialidade a corte de Lisboa sua Metrópole em 1º de 9bro do anno de 1755 escrita por hum curiozo, para memoria das Idades Futuras, manuscrito. de 1756 incluído no tomo 2 da colectânea de textos sobre o terramoto entitulado Biblioteca Volante ou colleção de relações dos lamentáveis effeitos que fez o Terremoto do 1º de Novembro de 1755, compilados e reunidos por Fr. Matias da Conceição em 1756, fol. 9, fol. 9v.