Sala de leitura pública da Biblioteca da Academia de Ciências de Lisboa. Note-se a presença de duas leitores femininas, possívelmente de leitura "popular", visto nesta época estarem as mulheres afastadas do ensino superior e da investigação. Foto de Joshua Benoliel. (fonte: Ilustração Portugueza, n.º 177 (12-6-1909).
Na 1.ª metade do século XX, ao contrário da actual rede de bibliotecas públicas que desde 1988 tem vindo a cobrir o território nacional, a quantidade de bibliotecas populares era diminuta para satisfazer a vontade de leitura da classe média portuguesa, mesmo nos meios urbanos. Perante esta situação de insuficiência, muitos leitores frequentavam algumas bibliotecas eruditas, transformando-as acidentalmente num espaço misto de leituras. "Eruditos" e "populares" partilhavam as mesmas salas de leitura. Qual era o pensamento dos bibliotecários sobre esta promiscuidade de leituras?
O Director da Biblioteca Municipal do Porto (apesar de municipal era considerada uma biblioteca erudita), Dr. Joaquim Costa, no manual de biblioteconomia escrito em 1943, a convite da editora Livraria Tavares Martins para integrar a linha editorial intitulada «Colecção para o povo e para as escolas» opina sobre a mistura de públicos e leituras.
«[...] Há Bibliotecas eruditas e de altos estudos onde se faz ainda, por transigência, que não deverá indefinitivamente manter-se, a leitura popular, amena ou recreativa.
Tal leitura é quási sempre prejudicial aos estudos sérios, que, a cada passo, perturba. Terá esta, portanto , de ser relegada às Bibliotecas populares, que não devem ficar longe delas.
A separação de tais leituras é útil, porque gradua a categoria especial da frequência e selecciona o pessoal que lhe assiste, dando maiores garantias e facilidades aos investigadores e estudiosos, que poderão deste modo, trabalhar mais à vontade e com muito maior proveito. [...].
Desenvolva-se a cultura popular, quanto seja possível; desenvolva-se e intensifique-se, mas não com grave prejuízo dos mais nobres trabalhadores do espírito. [...].
Prejudica-se sempre a cultura séria quando, cumulativamente e em grande número, se põe, ao lado dos melhores investigadores, cientistas ou eruditos consumados, leitores superficiais de obras insignificantes, sobretudo quando estes se mostrem irrequietos ou mal educados.
Preferir-se-á sempre a qualidade à quantidade, embora sem a inutilização desta. O trabalho do espírito exigirá, de-certo, algumas transigências. [...] (COSTA, 1943, pp. 36 - 38).»
O comentário do Dr. Joaquim Costa revela a mentalidade dos bibliotecários da época quanto à promiscuidade e eventuais conflitos de públicos. As leitura devia de estar hierarquizada em função do leitor, classificado em erudito ou popular, ou em função da finalidade, se de investigação/estudo ou de entretendimento. A cada leitura corresponderia um espaço próprio, estruturando-se assim uma selectividade de leitores. Mesmo em virtude da necessidade, provocada pela escassez de bibliotecas populares, a leitura de lazer e a leitura académica ou de investigação não se podiam cruzar, sob pena da primeira prejudicar a última. Neste contexto, o bibliotecário assume o papel de juíz das leituras. Avalia-as, hierarquiza-as e separa-as.
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