O bibliotecário e a hierarquia da leitura

Tal como hoje, na 1.ª metade do século XX as bibliotecas classificavam-se conforme os acervos bibliográficos e os públicos leitores. Segundo a doutrina biblioteconómica da época, existiam entre as várias classes de bibliotecas, as eruditas e as populares, nomenclatura actualmente absoleta. Mundos distintos! As bibliotecas eruditas incorporavam vastas colecções documentais, desde o livro antigo ao contemporâneo, tentando abranger todas as áreas do conhecimento universal. Como a designação da classe indica, estavam vocacionadas para um público erudito, culto, investigador, produtor de ciência e cultura. Por outro lado, as bibliotecas populares, mais modestas na oferta bibliográfica, dirigiam-se ao grande público, que nesse tempo ainda não possuia os recursos financeiros suficientes à compra de livros de acordo com o seu gosto de leitura. Prestavam assim um importante serviço social de apoio à leitura pública, enquanto que as bibliotecas eruditas desenvolviam mais uma função cultural devido ao tipo de património bibliográfico em posse. As bibliotecas populares eram na maioria tuteladas pelos municípios. As eruditas eram algumas com uma longa história, como a biblioteca da Academia de Ciências de Lisboa, a Biblioteca Nacional, a Biblioteca da Universidade de Coimbra, ou a Biblioteca Municipal do Porto. De acordo com as orientações biblioteconómicas, as bibliotecas populares teriam a missão entreter o povo através da leitura e transmitir-lhe conhecimentos úteis, de cultura e formação geral. Obras de ficção e de carácter técnico eram as mais usuais nas estantes das bibliotecas deste tipo. Livros de leitura fácil, de recreio ou de instrução, nada de conteúdos políticos ou filosóficos, ou de matérias de muito labor intelectual.
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Sala de leitura pública da Biblioteca da Academia de Ciências de Lisboa. Note-se a presença de duas leitores femininas, possívelmente de leitura "popular", visto nesta época estarem as mulheres afastadas do ensino superior e da investigação. Foto de Joshua Benoliel. (fonte: Ilustração Portugueza, n.º 177 (12-6-1909).

Na 1.ª metade do século XX, ao contrário da actual rede de bibliotecas públicas que desde 1988 tem vindo a cobrir o território nacional, a quantidade de bibliotecas populares era diminuta para satisfazer a vontade de leitura da classe média portuguesa, mesmo nos meios urbanos. Perante esta situação de insuficiência, muitos leitores frequentavam algumas bibliotecas eruditas, transformando-as acidentalmente num espaço misto de leituras. "Eruditos" e "populares" partilhavam as mesmas salas de leitura. Qual era o pensamento dos bibliotecários sobre esta promiscuidade de leituras?

O Director da Biblioteca Municipal do Porto (apesar de municipal era considerada uma biblioteca erudita), Dr. Joaquim Costa, no manual de biblioteconomia escrito em 1943, a convite da editora Livraria Tavares Martins para integrar a linha editorial intitulada «Colecção para o povo e para as escolas» opina sobre a mistura de públicos e leituras.

«[...] Há Bibliotecas eruditas e de altos estudos onde se faz ainda, por transigência, que não deverá indefinitivamente manter-se, a leitura popular, amena ou recreativa.

Tal leitura é quási sempre prejudicial aos estudos sérios, que, a cada passo, perturba. Terá esta, portanto , de ser relegada às Bibliotecas populares, que não devem ficar longe delas.

A separação de tais leituras é útil, porque gradua a categoria especial da frequência e selecciona o pessoal que lhe assiste, dando maiores garantias e facilidades aos investigadores e estudiosos, que poderão deste modo, trabalhar mais à vontade e com muito maior proveito. [...].

Desenvolva-se a cultura popular, quanto seja possível; desenvolva-se e intensifique-se, mas não com grave prejuízo dos mais nobres trabalhadores do espírito. [...].

Prejudica-se sempre a cultura séria quando, cumulativamente e em grande número, se põe, ao lado dos melhores investigadores, cientistas ou eruditos consumados, leitores superficiais de obras insignificantes, sobretudo quando estes se mostrem irrequietos ou mal educados.

Preferir-se-á sempre a qualidade à quantidade, embora sem a inutilização desta. O trabalho do espírito exigirá, de-certo, algumas transigências. [...] (COSTA, 1943, pp. 36 - 38).»

O comentário do Dr. Joaquim Costa revela a mentalidade dos bibliotecários da época quanto à promiscuidade e eventuais conflitos de públicos. As leitura devia de estar hierarquizada em função do leitor, classificado em erudito ou popular, ou em função da finalidade, se de investigação/estudo ou de entretendimento. A cada leitura corresponderia um espaço próprio, estruturando-se assim uma selectividade de leitores. Mesmo em virtude da necessidade, provocada pela escassez de bibliotecas populares, a leitura de lazer e a leitura académica ou de investigação não se podiam cruzar, sob pena da primeira prejudicar a última. Neste contexto, o bibliotecário assume o papel de juíz das leituras. Avalia-as, hierarquiza-as e separa-as.

Bibliografia:
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COSTA, Joaquim (1943) - Biblioteconomia. Livraria Tavares Martins, Porto

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