Ao contrário das anteriores batalhas navais descritas, envolvendo forças militares, a pequena batalha naval relatada neste post trata-se de um episódio de violência no mar entre grupos civis, a saber, pescadores da Trafaria e um grupo de algarvios. O relato da batalha foi impresso na Catalunha, anonimamente e sem data, mas é muito provavel datar-se do século XVIII, período de actividade da casa tipográfica onde foi impresso. Tem como título Nova relação da batalha naval que tiveram os algarvios com os saveiros nos mares, que confinam com o celebrado paiz da Trafaria, e não existe sobre esta obra qualquer referência nos compêndios de bibliografia que ajude a atribuir-lhe autoria e uma data concreta. O relato da batalha foi republicado em 1980 por João Palma-Ferreira, integrado numa antologia de textos sobre naufrágios e batalhas navais, o qual se transcreve com algumas pequenas supressões por economia de texto.
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«Nova relação da batalha naval que tiveram os algarvios com o saveiros nos mares que confinam com o celebrado país da Trafaria
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Em uma tarde do ardente Julho, [...] apareceu, em travessia do Cabo Espinhel (sic), a bombordo da nossa barra de Lisboa, uma armada de embarcações do Algarve, que constava de três lanchas guarnecidas, cada uma delas, com bastantes algarvios, vinte e tantos chuços, dezoito bicheiros, nove facas flamengas, vinte e cinco navalhas de dez réis e setenta e tantos cachimbos, entre velhos e novos; e assim vinham preparados para o que pudesse suceder, pois esta gente do Algarve, como são ali confinantes com os mouros, por isso todos são arrenegados [...].
Vai senão quando vindo estes três piratas do presente, por lhe faltar o contrato do passado, já dentro do nosso Tejo, tomando rumo da parte colateral do Bugio, chegaram à frente daquela famosa terra da Trafaria, [...] divisou uns vultos no meio da água; e entendendo ser atum ou golfinho deu logo parte ao seu comandante, e mandou este que voltassem por estibordo e que fossem a provar a natureza daqueles monstros marinhos. [...] entendendo ser empresa em que pudessem tirar os ventres de miséria, entraram a remar com toda a força e chegando aos ditos vultos, acharam-se engasgados com bóias de uma rede que ali tinham botado os ditos saveiros. Fizeram consulta entre si e votaram que se levantasse a rede e se saqueasse o peixe e tudo o mais que pudessem agadanhar para saciarem a desesperada fome das suas negregadas barrigas. Porém, estando todos nesta diligência, sucedeu vir um dos saveiros saindo da costa que fica ao sul da Trafaria, [...] e vendo este que ao redor da rede se divisavam três embarcações, supôs logo serem piratas e remando para trás com toda a força, foi logo dar parte aos companheiros [...]. Estes, que também não são moles pelo rústico modo de viver, [...] desassossegados com o aviso, deram logo ordem, com toda a pressa, a botarem as suas embarcações ao mar; armando-se de cacheiras, chuços, paus e facas, se embarcaram valorosos [...] e remando com inexplicável ligeireza chegaram a avistar as embarcações dos algarvios que já a este tempo tinham saqueado a rede com todo o peixe.
[...] chegando os saveiros a tiro de cachamorra e certificando-se de que eles lhe tinham furtado a rede com o peixe, [...] deram princípio à mais furibunda batalha que se tem visto cá nos nossos tempos.
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Pois juntando-se os saveiros, que eram sete, todos em fileira, fizeram cerco às três embarcações dos algarvios e estes, vendo-se no meio, lançaram mãos aos chuços e travando-se dura guerra de parte a parte, era tão grande o marcial estrépito [...] que toda a gente de Trafaria saiu a campo, sem que ficasse velhas no canto da chaminé, nem moça na porta da rua que não acudisse à praia, adonde se avistava o lugar da batalha; aqui já soavam as vozes de que tinham morrido cinco e dois que caíram ao mar, afogados e trinta e tantos feridos de uma e outra parte, certificando-se esta notícia com o sangue que já era tanto que chegava a tingir as brancas areias das cristalinas praias e qual outro Mar Vermelho apareceu o nosso Tejo nesta ocasião, que faltando já as forças a uns por feridos e as vidas a outros por mortos, metendo-se de permeio a obscuridade da noite, deram fim à batalha com grandes destroços de parte a parte.
E indo-se já recolhendo a justiça que teve notícia do sucesso, saltando-lhe ancas, prendeu tudo, fora uns poucos que fugiram e, passando-se só alvará de soltura aos que ficaram mortos, levaram trinta e tantos para a torre do Bugio e vinte e sete se acham no tronco desta cidade. [...]»
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Os algarvios sempre foram assíduos frequentadores do estuário do Tejo. Desde a Idade Média que grande parte do comércio entre o Algarve e Lisboa se fazia por via marítima. Talvez os protagonistas desta batalha estivessem empregados no transporte de mercadorias e no auge do desespero de uma crise ou aproveitando uma oportunidade de saque se entregassem a actos de banditismo.
Caíque algarvio, embarcação de pequena tonelagem e de navegação de cabotagem, utilizada na pesca e no transporte de mercadorias até ao inicio do século XX. É possível que as três embarcações dos algarvios referidas na narração da batalha da Trafaria fossem caíques. Imagem publicada por Artur Baldaque da Silva em Estado actual das pescas em Portugal, 1891. (Fonte: CAVACO, Carminda, 1976 - O Algarve Oriental: as vilas, o campo e o mar. Faro: Gabinete do Planeamento da Região do Algarve, vol. 2, p. 222)
Bibliografia:
Naufrágios, viagens, fantasias & batalhas - selecção, pref., leitura de texto e notas de João Palma-Ferreira. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1980, pp. 31, 32
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