A nobreza portuguesa sob o olhar estrangeiro

Numerosos estrangeiros visitaram Portugal no século XVIII. Pelos mais variados motivos, (cura de doença, espionagem, diplomacia, negócios, exílio político, missões científicas), atravessaram o mar e a terra até Lisboa. Sobretudo depois do terramoto de 1755, a capital portuguesa despertou a curiosidade de diversos estudiosos europeus. Muitos publicaram as suas observações sobre o território e a sociedade lusa, tornando a literatura de viagens uma rica fonte de informação sobre a realidade social, cultural, económica e política de setecentos.
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No que diz respeito ao panorama social português, os estrangeiros tentaram caracterizar todos os grupos sociais; escravos, mendigos, marginais, galegos, criados, comunidades estrangeiras, condição feminina, frades, nobres, enfim, todo o universo social por eles testemunhado e com o qual interagiram. A caracterização da elite política a partir de uma perspectiva exterior ao meio aristocrático é relevante pois transmite ao leitor uma observação tendencialmente mais distanciada e desapaixonada.
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Retrato da família do 1º Visconde de Santarém, pintura a óleo de Domingos António Sequeira, obra de 1816, exposta no Museu Nacional de Arte Antiga. O artista capta alguns traços identitários da imagem aristocrática. Repare-se no enorme quandro na parede, evocativo dos ascendentes familiares. Está igualmente patente a fidelidade ao rei, represntada pela estatueta de D. João VI em cima da mesa. fonte: Agenda Cultural da Câmara Municipal de Lisboa, n.º 208 (Março de 2008), p. 65

O suiço César de Sausure (1705 - 1783), enquanto fazia escala em Lisboa a caminho de Constantinopla, numa carta escrita em 1730, observa: «Os fidalgos ou grandes de Portugal, na sua maioria, não são muito ricos. Timbram, porém, na magnificência e grande número deles possui soberbos palácios, ricamente mobilados, numerosa criadagem, várias carruagens e muitos cavalos. A mesa, porém, e outras despesas menos públicas não correspondem a este aparato. Aos criados para alimentação e soldada não dão mais que alguns reais por dia e os próprios amos se alimentam muito frugalmente, contentando-se com dois pratos; arroz, como parte obrigada, galinha, carneiro e alguma fruta.» [1].
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Mais tarde, em 1789, o arquitecto irlandês James Murphy assertivamente escreve: « A Nobreza não é, relativamente, muito rica, porque o rendimento é pequeno apesar do património ser grande. Duvido que alguns dos seus membros tenham alguma vez visto um mapa das suas propriedades ou conheçam sequer os seus limites exactos. Se algum dia se dignarem a dedicar a sua atenção à construção de estradas e canais e a não considerarem a agricultura empreendimento indigno de fidalgos, tornar-se-ão os nobres mais ricos da Europa, dada a extensão das terras que possuem. Usam de grande prudência na distribuição das suas fortunas, sem revelar mesquinhez. Num país onde não há corridas de cavalos, licença para o jogo, nem mulheres caras, um cavalheiro pode manter-se com um rendimento moderado, pois que, felizmente, aquelas tentações lhe estão vedadas. Não suscitam os nobres a inveja dos pobres com orgias nocturnas nem com com carros dourados. Gastam o tempo entre os deveres da corte e os prazeres da sociedade, em reuniões particulares.
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As Belas Artes, que, para as classes superiores de todas as nações da Europa, constituem um dos prazeres da vida, são quase inteiramente indiferentes à Nobreza deste país, que não cultiva também, com gosto, as ciências apesar de para ambas possuir excelentes capacidades. A felicidade da sua vida doméstica é muito igual, não sendo marcada por brilhantes acções, mas também raramente manchada pelo vício. A fama dos seus ilustres antepassados torna-os merecedores de todas as honras e respeito mas, enquanto se vangloriam da recordação dos seus feitos, parecem esquecer os seus concelhos. Deve, no entanto, dizer-se que são possuidores de muitas qualidades apreciáveis. São religiosos, moderados, generosos, fiéis aos seus amigos, caridosos para com os desgraçados e ardentemente dedicados ao seu rei, cujas graças e um retiro sossegado constituem a maior felicidade das suas vidas.» [2].
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Poucos anos depois, em 1798, o professor e botânico alemão Heinrich F. Link (1767 - 1851) confirma a observação do viajante irlandês: «Não tenho nada a dizer em defesa das classes mais altas, ficam muito atrás dos espanhóis, tanto quanto o povo vulgar excede os seus vizinhos. Em todas as disposições falta de conhecimentos e de gosto, causada talvez pela falta de obras de arte nesta terra, um Governo que nunca soube ou teve oportunidade de arriscar atitudes e sentimentos nobres, a constante e opressiva proximidade da nação inglesa, que com razão se sente superior, a total decadência da literatura, estas são, creio eu, as principais razões pelas quais o nobre português ocupa o último degrau de entre a nobreza europeia.» [3].
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É inequívoco o juizo feito pelos observadores estrangeiros sobre a elite política portuguesa. Considerado pouco dado à criação de riqueza e ao empreendorismo, pois descura a gestão do vasto património, pouco dado ao gosto pelas artes e ciências, pois é ignorante e indiferente, o nobre português é visto como alguém mais preocupado com o aparato público, com a devoção religiosa, com a honra familiar e com a graça do rei, do que com o bem estar e desenvolvimento do reino. Por outro lado, alguns forasteiros como inglês William Beckford (1760 - 1844) [4] e o sueco Carl Israel Ruders (1761- 1837), revelam a natureza afável e dócil dos aristocratas para com os que lhe estão próximos, mesmo não sendo nobres. Carl Ruders descreve esta situação: «Em Portugal a diferença de posição coloca os homens a grande distância uns dos outros [...]. Os nobres têm grandes privilégios e direitos. Raras vezes mantêm relações com pessoas que não pertencem à sua casta, mas com os criados costumam ser muito condescendentes. Não é raro ver-se, à mesma janela, condessa e criada, em atitude familiar. É costume aqui, entre grandes e pequenos, quando se fazem visitas, perguntar aos criados e criadas que se encontram como têm passado de saúde, ou como têm passado desde a última vez em que se viram , dando-lhes lembranças dos parentes, ou recebendo-lhes para levar-lhas.» [5].
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A aristocracia portuguesa, é portanto, nos escritos estrangeiros, um corpo social pouco elogiado, embora lhe assinalem virtudes. Certos relatos parecem insinuar uma associação entre o estado atrasado do país e o comportamento e mentalidade da nobreza, tornando-os de certo modo responsáveis pela deplorável actividade económica, artística e científica na medida em que os aristocratas estão desinteressados pela economia, arte e ciência.

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Bibliografia:
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[1] SAUSSURE, César de - Cartas escritas de Lisboa no ano de 1730 in O Portugal de D. João V visto por três forasteiros, trad, pref. e notas de Castelo Branco Chaves, 2.º ed. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1989, p. 269
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[2] MURPHY, James - Viagens em Portugal, trad., pref., e notas de Castelo Branco Chaves. Lisboa:Livros Horizonte, 1998, p. 168, 169
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[3] LINK, Heinrich Friedrich - Notas de uma viagem a Portugal e através de França e Espanha, trad., introd. e notas de Fernando Clara. Lisboa: Biblioteca Nacional, 2005, p. 128
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[4] BECKFORD, William - A Corte de D. Maria I, 2.ª tiragem. Lisboa: Frenesim, 2007
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[5] RUDERS, Carl Israel - Viagem em Portugal, 1798 - 1802, pref. e notas Castelo Branco Chaves; trad. António Feijó. Lisbos: Biblioteca Nacional, 2002, vol. 1, p. 123

3 comentários:

Anónimo disse...

interessante o relato dos estrangeiros sobre a respectiva nobreza portuguesa... concordo com uns outros nem tanto..
*...falta de obras de arte nesta terra ... LOL acho que é deveras o contrário.

Medeiros

lena b disse...

É sempre bom apreciarmos como os outros nos vêem. A primeira citação fez-me lembrar o célebre episódio dos "rabanetes", na carta de Clenardo a Látomo (séc. XVI), em que ele conta que um português e um francês andavam em despique para ver quem se apresentava mais faustosamente. O português ostentava maior riqueza na rua, deslocando-se sempre com uma comitiva de oito criados. Mas quando o francês conseguiu ter acesso ao livro onde eram apontadas as despesas diárias do seu "rival", encontrou, para todos os dias da semana, uma conta que se resumia a pão, água e rabanetes. Ao domingo (diz Clenardo) pensou o francês que este iria ser lautamente banqueteado. Qual não foi o seu espanto, quando encontrou isto escrito: "Hoje nada, por não haver rabanetes na praça." Conclui Clenardo que em Portugal (cito de cor)"há uma chusma desses faustosos rabanófagos que, todavia, trazem atrás de si um tal séquito de criados como nunca vi".

Acho que os nossos (des)governantes deviam ler obrigatoriamente todos esses relatos dos estrangeiros que nos visitaram ao longo da História, antes de se porem com megalomanias...

Lena

Anónimo disse...

Está aí, bem clara, a origem de todas as mazelas desta terra que se chama Brasil... E não é diferente a história de nossos percalços do ocorrido em Portugal - que, do ponto de vista histórico e social, o Brasil nada mais é que um Portugal tropical e gigante. E ainda nos discriminam, os autores desta tragicomédia! Frouxos de riso! Brasileiros e portugueses, somos todos uns mouros, uns mais mestiços (os brasileiros). Enfim, somos uns fracassados, sendo que o Brasil ainda pode ter saída, porque tem potencialidades. Portugal... Bem, Portugal serve bem como museu!