Junot e um país indivisível (1807 - 1808)

Sucessivamente vitoriosa sobre os impérios da Europa Central (Prússia, Áustria e Rússia), a França napoleónica chega ao ano de 1806 a dominar a Europa. Senhora do Continente apenas o Oceano lhe escapava, porque o Reino Unido, confortavelmente protegido na sua insularidade faz-lhe frente. No ano anterior (1805) “naufragara” na batalha naval de Trafalgar o projecto de invasão da Inglaterra pela derrota da esquadra franco-espanhola frente à esquadra inglesa do almirante Nelson.
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Neste quadro político-militar, Napoleão impõe aos reinos marítimos europeus o Bloqueio Continental, medida que consiste no encerramento dos portos à navegação inglesa, no intuito de colapsar a economia britânica pelo bloqueio do acesso dos produtos ingleses ao mercado europeu. Portugal vê-se constrangido a optar por uma das partes beligerantes e numa lógica de escolha do mal menor não adere ao Bloqueio Continental, mantendo a secular aliança com a Inglaterra e por meio desta a integridade do império ultramarino. Porém, esta opção significava o sacrifício da metrópole à ocupação franco-espanhola.
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Para o fecho dos portos portugueses, Napoleão ajustou com Carlos IV de Espanha o tratado secreto de Fontainebleau, estipulando-se nele o livre-trânsito das tropas francesas pelo território espanhol e a divisão política de Portugal em três parcelas: o Reino da Lusitânia Setentrional formado pela província de Entre Douro e Minho e destinado a compensar Luís II da Etrúria (neto de Carlos IV de Espanha) pela perda do Reino da Etrúria; o Reino da Lusitânia Meridional constituído pela Estremadura, Beira e Trás-os-Montes que ficava sob sequestro com a fim de servir de “moeda de troca” em futuras negociações; e o Principado dos Algarves formado pelo Alentejo e Algarve, destinado a D. Manuel Godoy (Príncipe da Paz), ministro todo-poderoso do governo espanhol e um dos grandes obreiros da aliança franco-espanhola. O Tratado de Fontainebleau tinha ainda uma convenção anexa onde se previa que a Lusitânia Meridional seria governada pelo general comandante das tropas francesas e os impostos lançados neste território reverteriam para a França. As restantes partes (Lusitânia Setentrional e o Principado dos Algarves) seriam governadas pelos generais comandantes das divisões espanholas ocupantes e os impostos cobrados nessas regiões pertenceriam a Espanha.
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 Portugal segundo a divisão política definida pelo Tratado de Fontainebleau.
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Foi a Junot que coube o comando do exército francês invasor. Na sua correspondência para Napoleão, este general expunha abertamente as suas reservas quanto ao benefício e viabilidade do Tratado de Fontainebleau. Enquanto governador do território correspondente à Lusitânia Meridional (Estremadura, Beira e Trás-os-Montes) que lhe cabia segundo o Tratado de Fontainebleau, verificou que o mesmo era prejudicial aos interesses franceses no domínio económico-financeiro. O erário público estava vazio pois todo o dinheiro fora levado para o Brasil juntamente com a corte e as alfândegas não geravam receitas devido ao encerramento dos portos. Junot vê-se perante uma situação desesperada: sem qualquer receita do estado tem de sustentar o funcionalismo público e o seu exército. Escreve a Napoleão o seguinte: «Continua a reinar a tranquilidade em Lisboa, embora a miséria esteja a aumentar; o tesouro está sem dinheiro e o comércio corre mal. O administrador-geral das finanças deve enviar dentro em pouco a V. M. o seu relatório. Por ele vereis o saldo negativo que haverá no próximo ano, e neste momento temos uma extrema necessidade de dinheiro. […] as províncias do Alentejo e do Douro e Minho são as que devem apresentar os recursos territoriais. Todas as despesas são em Lisboa, mas os seus recursos já não existem, pois deixou de haver Alfândega; portanto, é preciso encontrar nos rendimentos dos bens da coroa e dos emigrados [os que fugiram para o Brasil] a diferença entre a despesa da corte e a receita das alfândegas […] as comendas vagas ou pertencentes a emigrados, os bens eclesiásticos, tudo isso na verdade, oferece recursos mas está, na sua maior parte, nas províncias ocupadas pelos espanhóis […]» [1]. Mais adiante repete os mesmos pontos de vista: «A administração das finanças está embaraçada por uma circunstância que era natural de prever. Os impostos das Províncias são cobrados pelos oficiais-generais que as governam [general Solano no Alentejo e Algarve e o general Taranco no Entre Douro e Minho], e o produto dos bens fundiários destas províncias fica lá, naturalmente, mas o Alentejo é o celeiro de Lisboa, e o Porto é a adega; estes dois recursos faltam em Lisboa e a administração está excessivamente embaraçada por causa dos abastecimentos. Os Bens da Coroa estão, em grande parte, naquelas duas províncias, e as receitas vão lá ficar, mas as despesas são em Lisboa. […] Todos os estabelecimentos nacionais, as grandes administrações, os pensionistas do Estado, os militares reformados, os serventuários da Corte e os grandes eclesiásticos são pagos pelo Tesouro Público, e uma parte das receitas que servem para cobrir essas despesas está nas províncias ocupadas pelos Generais espanhóis, que neste momento nos opõem dificuldades sem conta.» [2]. Desabafa ainda a Napoleão: «V. M. dignar-se-á recordar que eu só governo três províncias, a Beira, Trás-os-Montes e a Estremadura portuguesa, e que, por conseguinte, me são tirados 2/3 dos recursos do país, ao passo que conservo mais de 2/3 dos encargos por ter a cidade de Lisboa.» [3].
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Chega por fim a carta de Napoleão (datada 3 de Janeiro de 1808) que autorizava Junot a organizar um governo provisório com poderes de centralização fiscal, ou seja, as receitas fiscais das províncias sob administração espanhola reverteriam para Lisboa [4]. Mas esta era uma situação temporária, porque o Napoleão queria pôr o tratado em prática. Mais uma vez Junot explica os grandes prejuízos em se aplicar o tratado [5].
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O principal objectivo de Napoleão era o encerramento dos portos portugueses à navegação inglesa. Para esse fim, deter Lisboa seria primordial por ser o maior e melhor porto português. Mas Junot, pela experiência administrativa in loco, verificou que o tratado de Fointenebleau a ser aplicado tal e qual como estava estipulado tornava inviável a gestão de Lisboa por ser uma cidade extremamente dependente das receitas fiscais provincianas para pagar o funcionalismo público e o exército. A sua principal fonte de riqueza, a alfândega, não gerava receita porque o bloqueio naval inglês impedia a entrada de qualquer embarcação comercial. Era igualmente dependente de géneros alimentares, sobretudo cereais, produzidos principalmente no Alentejo e o vinho do Entre Douro e Minho. As madeiras para a construção naval vinham do Douro e do Alentejo. E do ponto de vista militar era, no entender de Junot, essencial a posse de Setúbal. Ora Setúbal estava na zona de administração espanhola, conforme o tratado [6].
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Por outro lado, Junot defendia que Portugal, como unidade geográfica e política, tinha grandes recursos económicos, estratégicos e militares a oferecer ao império francês, se fosse bem governado pela administração francesa. Seria injusto para o “bom” povo português repartir o seu território pelos espanhóis [7].
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A intenção do general Junot em manter Portugal uno e indivisível e livre da presença espanhola era no âmbito do Bloqueio Continental e da aliança franco-espanhola impossível de se realizar. Os exércitos franceses necessitariam sempre de uma rota militar através de Espanha para ocuparem o litoral português. Espanha só permitiria a passagem de contingentes militares franceses pelo seu território mediante uma compensação. Compensação que seria impreterivelmente feita à custa da anexação de território português. .
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Bibliografia:
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[1] JUNOT, Jean-Andoche – Diário da I InvasãoFrancesa; introd. António Ventura. Lisboa: Livros Horizonte, 1998, p. 121, 122 (carta n.º 80, 27 de Dezembro de 1807).
[2] Ibid., p. 124 (carta n.º 81, 8 de Janeiro de 1808).
[3] Ibid., p. 127 (carta n.º 83, 9 de Janeiro de 1808).
[4] Ibid., p. 134 (carta n.º 88, 4 de Fevereiro de 1808).
[5] Ibid., p. 139 (carta n.º 92, 4 de Fevereiro de 1808).
[6] Ibid., p. 139, 140 (carta 92, 4 de Fevereiro de 1808).
[7] Ibid., p. 139, 140 (carta 92, 4 de Fevereiro de 1808).
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