D. Manuel Caetano de Sousa e as bibliotecas de Itália em 1710 I

Após a invenção da tipografia por volta de 1450 dá-se por toda a Europa um rápido incremento das bibliotecas. O novo processo tecnológico de impressão de caracteres sobre papel transforma a concepção do livro enquanto trabalho artesanal laborioso, demorado, caro, reservado e de produção exclusiva das comunidades religiosas monacais. O fabrico do livro torna-se na actividade profissional dos tipógrafos que o fazem em série, com mais baixos custos de produção, logo a preços mais acessíveis ao consumidor, sendo este o primeiro produto industrial da civilização ocidental. Calcula-se que só nos primeiros 50 anos de imprensa (1450 - 1500), se tenha editado perto de 20 milhões de exemplares, quantidade bastante apreciável para a baixa demografia da época e sobretudo para a dimensão do público leitor (Febvre; Martin, 2000, p.322). Com o livro mais económico, as bibliotecas acumulam património bibliográfico a um ritmo gradualmente mais acelerado e pertencem a um expectro social mais diversificado. As personalidade eclesiásticas e aristocráticas deixam de ser as únicas a constituir bibliotecas particulares. A magistratura, o funcionalismo régio e alguma burguesia urbana passam a ser também uma faixa importante do público leitor (Ibid., p. 339-341).
.
Ao mesmo tempo aumenta o interesse pela nova e velha cultura, expresso no renascimento da literatura clássica, na descoberta de novos continentes e civilizações e na revolução científica do século XVII. No seio deste ambiente cultural surge a figura do coleccionador. Este recolhe todo o material que possa contribuir para o conhecimento do mundo e dos homens, incluindo-se nesta vaga definição o livro. Os coleccionadores de livros, os bibliófilos, procuram e discutem entre si as diversas edições de uma obra, manuscritos, livros únicos, raros, proibidos, etc… (Nuovo, 2003, p. 30-33, 39-41). Desenvolve-se uma certa “ciência dos livros” e um meio intelectual especializado em bibliografia, no qual se publicitam bibliotecas formidáveis que aguçam a curiosidade desses homens.
.
Um desses foi D. Manuel Caetano de Sousa (1658 - 1734), religioso teatino, eleito representante da sua comunidade religiosa ao Capítulo Geral da Ordem dos Clérigos Regulares realizado em Roma no ano de 1710. Planeou a viagem de modo a visitar demoradamente as principais bibliotecas italianas (Mota, 2003, p. 29-33). Foi uma viagem “filosófica”, de conhecimento das bibliotecas estrangeiras e do que por lá se fazia em matéria de "Ciência Bibliotecária". D. Tomás Caetano de Bem, autor das Memórias Históricas dos Clérigos Regulares em Portugal, descreve o périplo caetaneano no universo das bibliotecas transalpinas:
.
« [...] Depois de sahir o Grão Duque [Florença], sahio a visitar o seu Bibliothecario o célebre, e tão famoso Antonio Magliabecchi, tão instruido na Historia Literaria, e conhecimento dos livros, e de quem o mesmo Padre Sousa em suas Memorias affirma ser monstruoso em a sciencia Bibliothecaria. Este o recebeo com notaveis honras, e passárão logo a falar em livros; e Magliabecchi se queixou dos poucos, que de Hespanha passavão a Italia; e o Padre Sousa lhe deo noticia de alguns, que elle ainda não conhecia. Tambem lhe perguntou por algum Author, que tratasse de Capella Regia; porém não achou maior noticia que a que tinha. Dando-lhe o Padre Sousa noticia de algumas obras, que tinha composto, elle o persuadia a que désse à luz a Bibliotheca Theatina continuada; mas que primeiro que tudo publicasse a Dissertação sobre o Purgatorio do Papa Inocencio III. [...]
.
O Convento de Santa Maria Novella de Religiosos Dominicanos merecendo toda a attenção, não podia escapar á curiosidade do Padre Sousa. [...] tem huma boa Livraria, que está no topo: tem dous gabinetes, que servem para estudar em tempo de inverno, e que tambem estão cheios de livros. Vio o Noviciado, e diz, que este só fórma hum bom Convento, e que tem sua Livraria particular, e não pequena. [...]
.
Passou a ver o Convento de S. Marcos, que he de Padres Dominicanos [...]. Vio a Livraria, que he huma grande casa: he de tres naves, cujos arcos se firmão sobre vinte e quatro columnas de finissimo marmore, e bastante grossura, doze por cada lado: tem de comprido mais de duzentos palmos, e quarenta de largo. Para lograr mais luz, tem muitas janellas, e por isso menos livros: estes estão fechados com as grades, que fórmão planchetas de ferro, na fórma das que chamamos gelosias. Aqui se conservão muitas obras manuscriptas, e de grande estimação: entre elas se vem os originaes das que compoz Santo Antonino, cujo corpo está na Igreja do mesmo Convento.
.
Deste Convento [Convento de Santa Cruz, de Franciscanos] passou a outro, que chamão Abbadia, e he de Monges Benedictinos: obra antiga, em que se acha uma notavel Bibliotheca. He casa pequena, mas aqui se encontra hum grande numero de manuscriptos, assim Gregos, como Latinos, e de materias assim Ecclesiasticas, como Seculares: aqui lhe foi mostrado o original da vida do nosso Portuguez D. Gomes Ferreira, que em Italia tem por Beato, e seu corpo guardão com veneração. Foi este livro escrito no tempo da Regencia do nosso Infante D. Pedro, chamado o da Alfarroubeira, e a elle dedicado; e diz o Padre, que está escrito em muito bom Latim, e em bom caracter de letra, conforme aquelles tempos. O Padre D. Placido Puccinelli, Monge Cassinense, e Antiquario desta Abbadia de Florença, escreveo em Italiano a vida deste Beato com o seguinte titulo: Vita del Beato Gometio Portughese, Abbate della Badia di Fiorenza, Generale delli Camaldolensi, Segretario, e Teologo della Republ. Fiorentina dell’ insigne Monastero delle Murate, Riformatore di molti Monasteri, Commendatore di S. Croce di Coimbra, e Nuncio Apostolico nel Regno de Portugallo: da molti manoscriti fedelmente cavata. Impressa em Milão por João Pedro Romellati anno 1645 in 4.º e pag. 112 existe em a nossa Bibliotheca. O Padre D. Virginio N. Leitor, e Bibliothecario, muito noticioso de Livros, lhe deo noticia da Obra Paleographia Graeca, que o Padre D. Bernardo Montfaucon, Religioso Benedictino da Congregação de S. Mauro em França, tinha publicado no anno antecedente; na realidade muito util para a intelligencia dos caracteres Gregos antigos, como para o conhecimento dos Latinos he precisa a que o Padre D. João Mabillon da mesma Congregação escreveo, intitulada De Re Diplomatica, novamente impressa em París em 1709. […] Nesta Livraria se achão mais de dous mil manuscriptos preciosissimos, Hebraicos, Caldaicos, Gregos, Latinos, Arabigos, Italianos, e Francezes, e quasi todos com excellentes illuminações. Muitos originaes: os de Sannazaro, e Petrarcha, diz o Padre Sousa beijára. Aqui se guarda hum exemplar da Biblia Latina impressa em Moguncia por João Fust, Cidadão, e Pedro Schoeffer, Clerigo da mesma Diocese, em 1462 de cuja rarissima edição vimos em Lisboa quatro exemplares, hum na Real Bibliotheca, outro na Bibliotheca dos Padres da Congragação do Oratorio: ambos estes exemplares se consumírão no incendio, que padeceo esta Capital no I de Novembro de 1755. Outro exemplar na Livraria do Eminentissimo Cardeal D. João Cosme da Cunha; e outro em poder do Bispo de Béja Dom Fr. Manoel do Cenaculo, e ambos estes existem. He em folha, o caracter da letra parece manuscripto, mas he bem formado. E tambem aqui se acha a edição de Cornelio Tacito, feita em Roma por ordem do Papa Leão X em 1515 fol. e junto a esta os primeiros sinco livros dos Annaes do mesmo Author, que no mesmo tempo se descubrírão em Alemanha, e são manuscriptos. Em a Livraria desta Communidade se achão as obras de Cornelio Tacito, publicadas por Beato Rhenano em Basileia na Officina Frobeniana em 1533 fol. edição tão rara, que escapou á diligencia do vigilantissimo indagador João Nicolao Funccio, da qual se acha na Bibliotheca desta nossa Communidade hum exemplar. Acha-se hum manuscripto de Virgilio em letra de caracter redondo, que tem mil e trezentos annos de antiguidade, e nelle se acha escrito hum Epigramma feito pelo nosso Portuguez Achilles Estaço. Achão-se alguns manuscriptos Gregos nunca impressos. Aqui se acha manuscripta a Historia de Bernardo Oricelario, que nunca foi impressa, por causa de referir com demaziada sinceridade as horrorosas hostilidades que os Francezes (a quem sempre chama Barbaros) fizerão em Florença em tempo de Carlos VIII. E nesta obra faz o Author huma larga lamentação sobre o estrago, que padecêrão não só a Bibliotheca, e Museo da Casa de Medicis, mas ainda os mesmos Templos, e sepulturas. E lendo este lugar, se lembrou o Padre D. Manoel, e o Abbade Salvini da destruição feita neste seculo no Palatinado, e nos veneraveis monumentos de Spira. Vio os dous Tomos da Historia Geneologica da Casa de Gondi, que escreveo Mr. de Corbinelli, Gentil-homem originario de Florença, impressa em París em 1705 que tambem se achão em nosso estudo: edição tão estimavel pela magestade, e grandeza, que nella reluz, assim na perfeição dos caracteres, como na immensa copia de delicadissimas figuras, de que se orna. No topo desta Livraria se vião quatro esferas Armilares de bronze, segundo os quatro differentes systemas que há. Cada huma dellas descançava sobre os hombros de hum Athlante do mesmo metal, e este com hum joelho no chão, e com as mãos sustentando aos hombros a esfera, e postos sobre bases de madeira primorosamente lavrada. O diamentro das esferas he pouco mais, ou menos de palmo e meio. Estes livros estão todos encadernados em taboas, com chapas de latão, em que se vem abertas as Armas da Casa de Medicis. Era então guarda desta Bibliotheca D. N. Biscioni.

1 comentário:

Anónimo disse...

Estou neste momento a trabalhar a ordem dos clérigos regulares teatinos. Fico muito contente por te despertar interesse.