Almadrava: a epopeia da pesca do atum

A almadrava consiste num sistema de redes de grandes dimensões para a pesca do atum. O vocábulo, de génese arábica, caiu gradualmente em desuso a partir do início do século XIX, tendo sido substituído pelo termo armação de pesca, ou simplesmente armação.
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Tratando-se de uma espécie de migração sazonal, o atum nos meses de Maio e Junho, vindo do Atlântico Norte, transita pelo Golfo de Cádiz em direcção ao Mediterrâneo para realizar a desova, regressando em Agosto ao Atlântico. No território nacional, o Algarve é a região com melhores condições hidrográficas para a sua captura, pois situa-se na rota de ida para o Mediterrâneo e de retorno ao Atlântico. Até ao século XX e ao longo do litoral algarvio as almadravas eram colocadas a pouca distância da costa em sentido transversal ao rumo dos cardumes para lhes bloquear o movimento migratório. O atum ao tentar contorná-las dirigia-se para um compartimento de rede totalmente fechado denominado copo e aí ficava encurralado sem qualquer possibilidade de fuga. Estando o copo suficientemente cheio de atuns, os pescadores içavam-no para a superfície e com uns ganchos metálicos , os bicheiros, «fisgavam» os ditos peixes para o interior das embarcações, operação denominada copejo.
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O levantamento da almadrava. O atum é compelido a vir à superfície à medida que a rede do copo é levantada do fundo do mar. (Fonte: GALVÃO, António Miguel - Um século de História da Companhia de Pescarias do Algarve [...]. Faro: Cmpanhia de Pescarias do Algarve, 1948, p. 120)
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Caracteriza-se a captura do atum pelos profusos movimentos energéticos do peixe que tenta desesperadamente fugir à morte certa, e pela azáfama dos pescadores que parecem “dançar” no esforço de golpearem a presa. A água torna-se rubra e branca do sangue e da espuma, dando tons vivos ao jogo de movimentos. O copejo, espectáculo de cor e acção caótica, conhecido também como a “tourada do mar” despertou a atenção de Raul Brandão que na obra Os pescadores descreveu-o assim:
«Uns homens têm na mão direita a ganchorra curta e afiada, presa ao pulso pela alça, e outros, armados de um bicheiro mais comprido, só esperam que o atum comece a saltar para o chegarem aos barcos. Agita-se a água...Vêem-se os grande dorsos reluzentes e os rabos que chapinham... Espetam o peixe. Para não caírem à água, deitam a mão esquerda à corda amarrada ao pau de entrevela, curvam-se e fisgam-nos pela cabeça. O peixe resiste e quer fugir: sentindo-se preso, ergue-se, apoiado na cauda e é esse movimento de recuo que ajuda o homem a metê-lo para dentro da caverna, largando logo da mão o bicheiro, que lhe fica suspenso do pulso pela alça. Baixa-se o homem, ergue-se logo...Os barcos estão cheios de peles luzidias e de manchas gordurosas de sangue. São bichos enormes e escorregadios, de grossa de pele azulada, que batem pancadas sobre pancadas com o rabo. A gritaria aumenta – Eh! Eh!... É uma mixórdia que me cansa. Só vejo manchas sobre manchas, sobrepostas, a cor e o movimento, a cor dos homens, a cor dos grandes peixes que se debatem e morrem e a agitação que se precipita e acelera os gestos confundidos. E sobre tudo isto um grito, um grito de triunfo, o grito de matança que explode numa alegria feroz, a alegria primitiva: - Eh! Eh!... num quadro imutável, todo vermelho e negro.... Cheira a açougue. A água tinge-se de sangue, a água pegajosa encharca os barcos. Misturam-se as cores e as peles escorregadias.... A carnificina enfarta e enjoa.... há laivos nódoas de sangue na tinta azul do mar.... Imensa tela a tons violentos, com uma agitação frenética no primeiro plano
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O copejo. O atum está ao alcançe dos braços dos pescadores que tentam golpeá-lo com os bicheiros. (Fonte: GALVÃO, António Miguel - op. cit., p. 78)
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A cada almadrava no mar correspondia um arraial em terra. O arraial constituía-se pelo conjunto de cabanas onde os pescadores residiam com as suas famílias durante a temporada da pesca. Frei João de S. José, na obra Corografia do Reino do Algarve, escrita em 1577, descreve um arraial de pescadores:
«A pescaria deste peixe não só é proveitosa, [...] mas também de muito gosto e desenfado, porque [...] acode a ela grande soma de pescadores de todo Algarve, com suas mulheres, filhos e outra chusma e fazem suas cabanas por toda a costa onde estão as armações e continuadamente acode a eles toda a gente comarcã a lhe trazer todo o mantimento e refresco necessário e levar peixe, assi deste como d'outro que também ali morre. De maneira que cada armação parece ua feira. Cada armação não traz menos de 70, 80 homens de serviço, com suas barcas e caravelões pera recolher e levar o peixe onde se há-de dizimar e pagar os mais direitos, afora os mercadores do reino e d'outros muitos estrangeiros que tratam nele e o levam a suas terras
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Pescadores concertando as redes da almadrava. Ao fundo veêm-se as cabanas do arraial. (Fonte: SANTOS, Luís Filipe Rosa - A pesca do atum no Algarve. Loulé: s.n., 1989, p. 61)
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A referência documental mais antiga sobre as almadravas em Portugal data de 1305, quando D. Dinis autoriza o seu lançamento a João Momedes e Bonanati e lhe concede um empréstimo de 1500 dobras, mediante o pagamento da dízima e sétima parte dos atuns, espadartes e golfinhos capturados. Com efeito, a pesca ao atum por meio de armadilhas de rede era conhecida desde da Antiguidade Clássica. No século III a. C. o grego Appianus descrevia na sua obra Haliêutica um método de pesca aparentemente semelhante ao das almadravas. Ele menciona « armadilhas de rede que seguiam pelo mar adentro e em certa altura se fixavam, formando como que casas, com vestíbulos, portas e câmaras interiores onde o peixe era colhido em quantidades apreciáveis».
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Esta faina estava incluída nas Pescarias Reais, tal como a pesca da baleia, golfinho, corvina e espadarte; actividades piscatórias de direito real, exercidas mediante autorização régia. Os interessados na sua exploração comercial tinham de pagar ao tesouro real 60% sobre o peixe capturado. A pesca do atum no Algarve interessou particularmente aos armadores e pescadores catalães e italianos, sobretudo sicilianos. Em 1368 armadores sicilianos estabelecidos em Lagos levam a cabo experiências visando uma maior eficácia das almadravas, e em 1440 D. Duarte arrendou-as a uma sociedade de sicilianos. Depois, em 1485, catalães e italianos exportavam milhares de arrobas de atum salgado para os seus países a partir do porto de Lagos. O atum salgado sempre foi um produto de exportação, principalmente para o mercado italiano e catalão. Devido ao elevado preço, o mercado português foi quase sempre secundário. Já em 1505, registra-se um contrato de arrendamento das almadravas entre o rei D. Manuel e um armador italiano, um tal de Bartolomeu «froletim», na importância de 1.310.504 reis. Em alguns casos constituíram-se sociedades comerciais com avultadas somas de capital para investirem na pesca do atum. No arquivo municipal de Messina (Sicilia) existem pelo menos três registos da formação de sociedades comerciais cujo fim era a pesca e comércio do atum algarvio. A participação dos mercadores sicilianos foi bastante incentivada, particularmente no reinado manuelino, através de isenções aduaneiras e medidas de protecção económica.
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Outro aspecto do copejo. São necessários dois homens para colocarem dentro da embarcação um atum. (Fonte: GALVÃO, António Miguel - op. cit., p. 121)

À medida que a receita do arrendamento das almadravas aumentava, a autoridade real preocupava-se mais com a sua fiscalização. Para melhor administrar os direitos reais foi criado o cargo de Feitor das Almadravas em 1498. Os 60% de direitos reais contribuíam com importâncias cada vez maiores para o tesouro da coroa. Os tempos áureos da pesca atuneira perduram sensivelmente até 1619, com rendimentos anuais na ordem dos 10.500.000 a 20.000.000 reis.

Todavia os valores decrescem drasticamente. Nos três anos seguintes as receitas reais cifram-se em apenas 8.120 000 reis e daí em diante até 1721 a média dos rendimentos andará na ordem dos 800 reis, só havendo notícias de alguma recuperação em 1739. O Marquês de Pombal pretendendo revitalizar o sector, funda a Companhia Geral das Reaes Pescarias do Reino do Algarve (CGRPRA) em 1773. Para retirar a pesca do atum da crise foram revistos os tradicionais processos de exploração da actividade, de modo a satisfazer todas as partes envolvidas no trato; rei e armadores. Procedeu-se a uma “revolução” na gestão do negócio pela mão do Marquês de Pombal. Os direitos reais sobre o pescado diminuiu para 20% e o preço do sal das marinhas de Castro Marim e Tavira desceu para 900 réis o moio. A CGRPRA tinha por concessão real a pesca e o comércio em regime de exclusividade de todo o atum na costa do Algarve, sempre renovada até 1836, ano da extinção da empresa.

Nesta imagem é bem visível o golpe desferido pelo pescador na sua presa. (Fonte: GALVÃO, António Miguel - op. cit. p. 122)
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Com o início do liberalismo económico após a guerra civil de 1832-34 surgiram várias empresas de pesca no Algarve que exploravam uma ou mais almadravas. O número de almadravas subiu continuadamente ao longo do século XIX, atingindo o número máximo de 19 entre 1898 e 1903. A pesca do atum conheceu um período de prosperidade económica até ao fim da I Guerra Mundial. Depois com a desvalorização dos preços, a concorrência de outras artes de pesca e o decréscimo da afluência do atum, as almadravas foram-se extinguindo gradualmente até 1971.

Bibliografia:

ANDRADE, Vicente Joaquim de - Memória sobre as Pescarias Reaes do Reino do Algarve, Lisboa: Imprensa Régia, 1813.

ARIENZO, Valdo d’ – No extremo ocidental: privilégios, empreendimentos e investimentos sicilianos no Algarve in Ler História, n.º 44 (2003).

BRANDÃO, Raul- Os pescadores, s.l.: publicações Europa- América, s.d.

CABREIRA, Thomaz - O Algarve económico, Lisboa: s.n., 1918.

COSTA, Fausto- A pesca do atum nas armações da costa algarvia, Lisboa: Bizâncio, 2000.

GALVÃO, António Miguel - Um século de História da Companhia de Pescarias do Algarve: elementos para o estudo da pesca do atum no Algarve e da sua evolução histórico-jurídica, Faro: Edição de Companhia de Pescarias do Algarve, 1948.

MAGALHÃES, Joaquim Romero - Para o estudo do Algarve económico durante o século XVI, Lisboa: Edições Cosmos, 1970.

Idem - O Algarve económico 1600-1773, Lisboa: Editorial Estampa, 1993.

SANTOS, Luís Filipe Rosa - A pesca do atum no Algarve, Loulé: s.n., 1989.

S. JOSÉ, João de, Fr. - Corografia do Reino do Algarve in Duas descrições do Algarve do século XVI, apresentação, notas e glossário de Manuel Viegas e Joaquim Romero Magalhães, Lisboa: Sá da Costa, 1983.

SILVA, Baldaque da - A pesca do atum in Revista Portugueza Colonial e Marítima, A. 1, (2º Semestre, 1897/98).

PS: Este post é uma modesta homenagem ao meu bisavô, João Prudênco de Jesus (1868 - 1954), na foto, ao meu tio-avô Francisco Prudêncio, ao meu avô António Prudêncio (1907 - 1988) e aos meus tios António Prudêncio e Casimiro Branco, todos eles antigos pescadores nas almadravas.

3 comentários:

Anónimo disse...

Parabéns! o teu blog está muito bem elaborado e apresenta uma resenha histórica muito bem conseguida que contrasta com a maioria da informação que normalmente se encontra na internet. A tua preocupação em encontrar um substracto científico aliado ao carinho e conhecimento familiar pelo tema resultaram muito bem! Fiquei mesmo admirado! :D

Anónimo disse...

Parabéns por prestar homenagem a uma geração de pescadores algarvios - gente de outros tempos - têmpera rija e corajosa.

Unknown disse...

Bom texto. A sua família esteve em que armação?