A questão constitucional foi o principal foco gerador da instabilidade política da primeira fase do regime liberal português (1834 - 1851. À volta dos textos constitucionais (Constituição de 1822 e Carta Constitucional de 1826) formaram-se duas correntes políticas opostas e em permanente luta; luta intensamente vivida nas cortes, nos jornais, nas ruas, nos cafés, nos quartéis, e em algumas ocasiões nos campos de batalha. De um lado os Setembristas, apoiantes da restauração da Constituição de 1822, consagradora da soberania nacional, entendida como a nação que livremente elege os seus representantes políticos. Por outro lado, os Cartistas, defensores da Carta Constitucional de 1826, outorgada à nação não por vontade popular mas por vontade real, ou seja, pelo rei que partilha legitimamente com a nação a soberania do Estado. Existiam assim duas origens da soberania: uma que residia exclusivamente na nação, isto é, nos cidadãos, e outra, mista, repartida entre a nação e o monarca. A par da origem da soberania, os textos constitucionais arquitectavam concepções de organização do poder distintas. A Constituição de 1822 legitima três poderes (legislativo, executivo, judicial), a Carta Constitucional contempla além destes um quarto poder: o poder moderador, exclusivo do rei. O poder moderador dava ao rei o direito de nomear ministros, vetar leis aprovadas pelos deputados, prorrogar, adiar e dissolver as Cortes. Em adição a estas prerrogativas reais, existia uma segunda câmara parlamentar (Câmara dos Pares) de nomeação régia e um Conselho de Estado de membros vitalícios nomeados pelo rei. Em suma: o rei mandava no Estado; a soberania régia sobrepunha-se à soberania popular (BONIFÁCIO, 1993, p. 15).
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Com a queda do governo de Costa Cabral (20 de Maio de 1846) na sequência da revolta popular Maria da Fonte, a rainha D. Maria II viu-se forçada a nomear um novo governo, chefiado pelo Duque de Palmela. O governo de Palmela objectivava apaziguar a revolta, activa em todo o país e organizada em juntas, atendendo a algumas reivindicações dos povos. Nesse sentido, convocou eleições directas para eleger as Cortes Extraordinárias, com poderes constituintes, ou seja, submeteria a Carta Constitucional de 1826 às alterações que o parlamento julgasse necessárias (Ibid., p. 22). Achando a rainha que Palmela cedeu demais na política de apaziguamento, pondo em risco o poder real, substituiu o seu governo pelo do Saldanha na noite de 5 para 6 de Outubro por meio de um golpe palaciano conhecido pelo designação de «Emboscada». O golpe foi interpretado por todos como tentativa para manter inalterada a Carta Constitucional e sinal da indisponibilidade da rainha e dos cartistas em encontrar um consenso político através da reforma constitucional. Na mente da aposição setembrista só uma solução se descortinava: a guerra. Nasce a guerra da Patuleia.
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O grito de revolta foi automático e perpassou por todo o país. Num ambiente de levantamento popular generalizado contra o governo, organizaram-se de norte a sul guerrilhas civis que se puseram ao lado dos corpos do exército sublevado. Na correspondência do Marquês da Fronteira, Governador Civil de Lisboa, para o Marechal Saldanha, Ministro da Guerra, (correspondência composta por 126 fólios manuscritos datados de 1 de Agosto a 30 de Novembro, existente no Arquivo Histórico – Militar com a cota AHM/DIV/1/27/02/158) é possível acompanhar o percurso de parte do movimento guerrilheiro patuleia. No âmbito da vedrografia interessa-nos apenas as informações referentes à guerrilha de Torres Vedras (GTV).
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A partir de 20 de Outubro o Governo Civil de Lisboa informa o Ministério da Guerra sobre o desenvolvimento do «mau espírito» político em Torres Vedras e regiões limítrofes, relacionando-o com a passagem do Visconde de Sá da Bandeira pela vila, e à influência de um foco insurreccional protagonizado por José Estêvão nas Caldas da Rainha. As notícias indicavam que os povos de Torres Vedras e Lourinhã estavam armados, tendo até atacado um destacamento militar do Regimento de Infantaria n.º 8 que da Lourinhã se dirigia para Lisboa. Indicavam que Sá da Bandeira e outros agentes incitavam a população à revolta e que a GTV se juntasse às guerrilhas de Óbidos e de Caldas da Rainha, organizadas por José Estêvão (cartas de 20 e 21 de Out.). A GTV, liderada por um tal Maia, escrivão do Juízo de Direito, estava entendida com a guerrilha de Caldas da Rainha para que juntas efectuassem o assalto ao forte de Peniche a fim de se apropriarem de armas, munições e apetrechos militares. Intençionava também de exigir um empréstimo obrigatório aos negociantes e proprietários torrienses, exigência que provocou a fuga de alguns destes das suas residências. Os guerrilheiros eram sobretudo trabalhadores rurais sem emprego, atraídos à guerrilha mais pela promessa dos 120 reis diários de soldo, do que pela oposição política ao governo, sendo encarados pela maioria da população de Torres Vedras com indiferença (carta de 23 de Nov.).
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A GTV não realizou qualquer acção contra o forte de Peniche, mas no dia 27 de Outubro dirigiu-se ao Real Asilo de Inválidos Militares de Runa com o objectivo de se apoderar do arsenal aí depositado. Fernando Luís Pereira Miranda Palha, director do Asilo de Runa, no oficio enviado ao ministro da guerra (Saldanha) relata que uma força popular de cerca de 40 elementos (entre cavaleiros e peões), se lhe apresentou com um ofício do administrador do concelho para que fosse entregue todo o armamento à guerrilha. A GTV ficou assim na posse de 30 espingardas e de 24 alabardas. Segundo as suas próprias palavras, o director do Asilo de Runa optou por não resistir porque sabia que de Torres Vedras viria bastante auxílio aos guerrilheiros em caso de conflito (AHM/DIV/1/27/02/28, carta de Luís Pereira Miranda Palha para o ministro da guerra, 28 Out.).
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Nota: para aceder mais rapidamente aos documentos mencionados basta clicar aqui http://picasaweb.google.pt/ruipru/AGuerrilhaDeTorresVedras#
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